domingo, 11 de outubro de 2009
José Arbex Jr.
Os velhos uruburibes atacam na nova América Latina
Qual a relação entre o golpe desferido em 28 de junho, em Honduras, que depôs o presidente eleito Manuel Zelaya, e a disposição do presidente colombiano Álvaro Uribe de permitir a instalação de três bases militares estadunidenses em seu país, anunciada com estardalhaço no início de agosto? Aparentemente, nenhuma.
Os golpistas que depuseram o presidente Manuel Zelaya tinham seus interesses próprios: eles abortaram um processo de consulta popular sobre a eventual convocação de uma Assembléia Constituinte, que, obviamente, colocaria em risco o monopólio do poder exercido há três décadas pelos dois partidos das oligarquias: o Liberal (ao qual
pertencem tanto Zelaya quanto os próprios golpistas) e o Nacional. Uribe, de sua parte, resolveu, soberanamente, abrir mão da soberania, e permitir a instalação das novas bases estadunidenses com o objetivo de reforçar o combate contra o narcotráfico e as Farc, tendo como justificativa o recente fechamento da base militar dos Estados Unidos em Manta, no Equador, por determinação do presidente Rafael Correa.
Conclusão: uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, para utilizar um aforismo do filósofo máximo do neopetismo, José Genoíno. Essa versão seria até defensável, não fosse a intromissão de uma palavrinha mágica, que muda tudo: energia (petróleo, biodiversidade, água, minérios etc.).
Honduras é rica em petróleo, como demonstram prospecções feitas por uma empresa norueguesa, contratada por Zelaya, que também resolveu integrar o seu país ao grupo Petrocaribe e à Alba (Aliança Bolivariana das Américas), ambos criados pelo governo Chávez. Não bastasse isso – informa Frida Modak, ex-secretária de imprensa do governo Salvador Allende –, o projeto de Zelaya, no caso de uma eventual nova constituição, era estabelecer que os recursos naturais hondurenhos não poderiam ser entregues a outros países. Isto é, Zelaya preparava-se para lançar a sua própria versão da campanha “o petróleo é nosso”. E, por fim, a nova Constituição, segundo Zelaya, estabeleceria o fim do monopólio dos meios de comunicação, assegurando o direito à participação das comunidades (o que explica, aliás, o apoio dos “barões da mídia” local ao golpe).
Quem não viu esse filme antes? O programa de governo de Zelaya – não importam, aqui, suas motivações – contraria os interesses dos grupos estadunidenses que já controlam uma parte substantiva das reservas latinoamericanas. Seria muita ingenuidade – para dizer o mínimo – imaginar que o golpe em Honduras foi articulado sem a participação do grupo neoconservador incrustado no Departamento de Estado dos Estados Unidos e porta-voz das empresas que exploram as reservas mundiais de petróleo e fontes de energia, o mesmo grupo que articulou a invasão do Iraque, entre outras coisas. O próprio embaixador estadunidense em Honduras, Hugo Llores, foi nomeado pelo governo Bush-Cheney.
Influência regional
Há, aqui, um interessantíssimo fator complicador. O governo Barack Obama, desejoso de recuperar a influência estadunidense no hemisfério após o desastre Bush, multiplicou declarações segundo as quais acabaram-se os tempos em que os Estados Unidos se julgavam no direito de ditar os rumos da América Latina. Como reflexo dos supostos “novos tempos”, a OEA suspendeu o veto histórico à participação de Cuba e a Casa Branca abriu novas possibilidades de diálogo com Havana. Para os republicanos e neoconservadores estadunidenses – e mesmo para uma parcela “ortodoxa” dos democratas -, essas medidas equivalem a um inaceitável abandono da Doutrina Monroe (“a América para os americanos”), que, desde 1823, orienta a política externa dos Estados Unidos para a América Latina. Esse quadro estabelece, no mínimo, uma tensão entre a retórica de Obama e a prática dos responsáveis pela política externa estadunidense.
Tensão semelhante foi criada em 1975 – observa o pesquisador estadunidense Greg Grandin –, quando, após o escândalo de Watergate e o fiasco do Vietnã, os arquitetos da política externa do governo Jimmy Carter declararam “obsoleta” a Doutrina Monroe, considerada “inapropriada e irrelevante para as novas realidades e tendências futuras” por Sol Linowitz, então presidente da Comissão para as Relações Estados Unidos – América Latina. Foram os anos que deram impulso ao processo de “transição” das ditaduras militares para as chamadas novas “democracias”. A reação não se fez esperar: veio na forma da eleição de Ronald Reagan e a tomada de assalto da Casa Branca pelos neoconservadores arquitetos do neoliberalismo (mantido e ampliado, de modo muito eficaz, nos anos 90, pelo democrata Bill Clinton). A série “Rambo”, não por acaso lançada por Hollywood logo após a posse de Reagan, reflete com exatidão o espírito da época.
A América Latina, em particular, foi objeto de ataque, já em 1980, por parte de um grupo de intelectuais e políticos estadunidenses de ultradireita, que lançou o Documento de Santa Fé (nome da cidade do Estado do Novo México onde o seu primeiro encontro foi realizado), contendo diretrizes que o presidente Ronald Reagan deveria adotar
para as Américas. O centro do documento é, precisamente, a defesa da Doutrina Monroe. Fazia parte do grupo o historiador Lewis Tambs, depois indicado para o cargo de embaixador dos Estados Unidos na Colômbia, e criador, nos anos 80, da expressão “narcoterrorismo”, para caracterizar a atividade dos grupos guerrilheiros colombianos.
Em 8 de abril de 1986, o então presidente Ronald Reagan previu, pela primeira vez, mediante a adoção de um decreto, a possibilidade de utilizar unidades militares de seu país contra narcotraficantes. Estes passaram a ser considerados “ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos”.
Para ler o artigo completo e outras reportagens confira a edição de setembro da revista Caros Amigos, já nas bancas, ou click aqui e compre a versão digital da Caros Amigos.
segunda-feira, 5 de outubro de 2009
Odorico Mendes
Ilíada na transcriação de Odorico
Argumento do Livro III
Os dois exércitos avançam um contra o outro. — Páris a frente dos
Troianos provoca os mais bravos dos Gregos ao combate. — Menelau
vai ao seu encontro, mas Páris amedrontado busca refúgio entre os
Troianos. — Exprobrações de Heitor. — Resposta de Páris ; propõe
sustentar um combate com Menelau do qual Helena será o prémio. —
Heitor, contente leva o desafio de seu irmão ao herói Grego. — Dis-
curso de Menelau. — Preparam-se sacrifícios. — Entretanto íris,
tomando a forma de Laodice, vai ter com Helena, e lhe anuncia as
disposições dos dois exércitos. — Helena vai às portas Ceias, onde
ela acha a assembleia dos velhos Troianos, que fazem o elogio de sua
beleza. — Ela designa a Príamo os principais chefes Gregos. —
Retrato de Agamémnon, de Ulisses, de Menelau e de Ajax, entre os
quais Helena sente não ver Castor e Pólux, seus irmãos. — Por
conselho de Ideu, Príamo vai com Antenor ao meio dos dois exércitos.
— Agamémnon levanta-se, chama a cólera dos deuses sobre os perjuros
e sacrifica. — Discursos de Príamo, que volta a ílio para não teste-
munhar uma luta em que um de seus filhos pode ser vítima. —
Aprestos e fases diversas do combate. — Páris vai sucumbir quando
Ténus o livra dos golpes de Menelau, o transporta ao leito nupcial, e
lhe faz esquecer a derrota nos braços de Helena, que resiste a princípio
e cede enfim. — Menelau procura em vão seu rival; e Agamémnon
reclama para seu irmão o prémio da vitória.
Canto III
Os Teucros em batalha, após seus cabos,
Gritando avançam: tal se eleva às nuvens
Dos grous o grasno, que em aéreas turmas,
Da invernada e friagens desertores,
Contra o povo Pigmeu com ruína e morte,
O Oceano transvoam. Desejosos
De entreajudar-se, tácitos os Gregos,
Força e coragem respirando, marcham.
Qual se, ingrato ao pastor, Noto enche os cumes
De névoa, mais que a noite ao furto asada,
Pois que a tiro de pedra mal se enxerga;
Aos pés túrbido pó não menos surge
Dos que iam pelo campo acelerados.
Perto eles já, da prima Troica fila Páris nítido sai: com arco e espada,
Pele de um pardo enverga; de énea ponta
A vibrar dois hastis, os mais valentes
Um por um desafia. Em grave passo
Vendo-o vir Menelau, como esfaimado
Leão exulta que, ao topar fornido
Galheiro cervo ou corpulenta corça,
Ferra-o voraz, embora em cerco o apertem
Viçosos moços, vívidos subujos.
Do coche em armas vingativo salta;
Mas Alexandre, que na frente o avista,
Para os seus retraiu-se estremecendo.
Se alguém no serro ou brenha encontra serpe,
Trépido recuando empalidece:
O deiforme elegante assim do Atrida
Aos suberbos Troianos retrocede.
Agro o invectiva Heitor: "Funesto Páris ,
Mulherengo falaz, nunca nasceras;
Ou solteiro acabar melhor te fora
Que escárnio a todos ser. És sim bonito;
O Argeu cornado, que pugnaz te cria,
Ri de que alma tão vil teu corpo aloje.
A navegar, poltrão, forçaste amigos,
Da Ápia ousando a beleza peregrina,
Consorte e irmã de heróis, trazer contigo?
E és a teu pai flagelo, aos teus e à pátria,
Mofa de estranhos, de ti mesmo opróbrio?
Fugiste a Menelau? provaras que homem
Houve as primícias da mulher que usurpas;
Cítara, nem madeixas, nem beldade,
Nem Vénus com seus mimos te valera,
No pó submerso. Por devida paga,
Se os nossos Teucros tímidos não fossem,
Tu já vestiras túnica de seixos."
E o formoso Alexandre: "Essa fraterna
Mereço, Heitor; mas no âmago tens rijo
Coração, qual secure que, aumentando
Ao pulso a robustez, penetra o lenho,
Talha e em navais aprestos o afeiçoa.
Da áurea Vénus os prémios não me exprobres;
Nem são de recusar os dons celestes,
Nem alvedrio é nosso o consegui-los.
Se me queres na liça, Aqueus e Troas
Sossega: eu só com Menelau a braços
Dispute Helena; o vencedor aceite
E reconduza a dama e os seus tesouros.
Ferido o pacto, em sólida amizade
Neste pingue torrão fiquem-se os nossos;
De cavalos fecunda aqueles Argos
E Acaia busquem de gentis mulheres."
Folga Heitor, e hasta em punho, os seus retendo,
Se adianta; mas alvo era de pedras,
Frechas e lanças, té bradar o Atrida:
"Basta, Aquivos, cessai, crinita gente;
Que acena o galeato herói Priâmeo."
Ei-los subitamente se aquietam,
E chama Heitor: "Sabei de mim, Dardânios
E Aqueus de fina greva, o que Alexandre
Propõe, da guerra autor. De parte a parte
Largadas no almo chão fulgúreas armas,
Menelau marcial a sós com ele
Dispute Helena; o vencedor aceite
E reconduza a dama e os seus tesouros;
Nós outros aliança e paz firamos."
Calam-se, e Menelau sonoro troa:
"Sede-me atentos; esta angústia é minha.
Atormenta-me a guerra: Aqueus e Troas
Por mim, por Alexandre origem dela,
Nímio têm padecido! Os mais pactuem;
Morra qualquer dos dois que a Parca assine.
Preta imole-se à Terra uma cordeira,
Cordeiro branco ao Sol, branco ao Satúrnio.
Mas Príamo o tratado ratifique;
Seus filhos com perfídia os juramentos
Podem quebrar, sem pejo do Supremo.
Dos mancebos a mente é sempre instável:
O ancião, reportando-se ao passado,
Olha ao futuro, concilia todos."
Alegram-se os Trojúgenas e Aquivos,
Terminar concebendo a luta .infausta.
Dos coches apeando, os enfileiram;
As armas despem, que ante si descansam:
Breve espaço medeia. Dois arautos
Expede logo Heitor, que as reses tragam,
E a Príamo convida. A rês terceira
Manda vir Agamémnon por Taltíbio,
Que ao rei submisso para as naus caminha.
A Helena bracicândida vem Íris,
Nas feições de Laodice, do Antenório
Príncipe Helicaon dilecta esposa,
E a mais bela de Príamo gerada.
Acha-a tecendo em casa dupla trama,
Luzida e larga, onde as acções bordava
Que arnesados Aqueus e équites Frígios
Sustentavam por ela encruecidos.
Chega a núncia veloz: "Sus, ninfa amada,
Contempla e admira os Graios e os Troianos:
Não há muito, em combates lagrimosos
Ardiam por matanças; quedos ora,
Sem contenda, arrimados aos escudos,
Os longos piques junto a si pregaram.
Só lança a lança Menelau com Páris
Vai duelar: do que vencer o nome
Terás de queridíssima consorte."
Assim na alma a saudade se lhe estampa
Do marido e dos lares e parentes.
De véu cândido ao rosto, água nos olhos,
Saiu do gineceu; não vai sozinha,
Vai com fàmulas duas, a Piteia
Etra e Climene de bovinos lumes.
As portas Ceias já de assento encontra
A Príamo na torre, e Panto e Clício,
Hiceteon belaz, Timetes, Lampo,
Mais Antenor e Ucalegon sisudos,
Que por velhos abstinham-se da guerra;
Porém, bons oradores, semelhavam
A cigarras que, n’árvore pousadas,
A selva adoçam com suave canto.
À torre vendo aproximar-se Helena,
Dizem baixo entre si: "Não sem motivo
Povos rivais aturam tantos males!
Que porte e garbo! efígie é das deidades.
Mas, tal qual seja, embarque; a nós de exício
Não continue a ser e a nossos filhos."
Então chamou-a Príamo: "Anda, ó cara,
Teu cônjuge primeiro e afins e amigos
Atenta ao pé de mim. Não és culpada;
Guerra tão crua, os deuses ma enviaram.
Aquele Argeu quem é, bizarro e esbelto?
Outros se lhe avantajam na estatura;
Mas nunca os olhos meus tamanho viram
Decoro e majestade: um rei parece."
Respondeu-lhe a mais nobre das mulheres:
"Amado sogro, temo-te e venero;
Oh! morte eu padecera, antes que o toro
Por teu Páris tivesse abandonado,
E os irmãos e a só filha e as companheiras I
Eu vivo e em mesto pranto me definho.
Mas vou satisfazer-te: o herói que apontas
É rei sublime e campeão tremendo,
O pujante Agamémnon; que vergonha!
Se um dia o mereci, foi meu cunhado."
Pasma e exclama o ancião: "Feliz Atrida!
Mimoso da fortuna, que em florentes
Graios dominas! Muitos vi peritos
Cavaleiros na Frigia pampinosa,
E as de Migdon divino e Otreu falanges,
Que do Sangário às bordas acampavam;
Lá como auxiliar no ataque estive
Das viris Amazonas: mor quantia
De olhinegros Aquivos se apresentam."
Prossegue a interrogá-la: "A quem do Atrida
Sobrepuja a cabeça, dize ó filha,
E é dos peitos mais largo e das espáduas?
Em terra as armas, as fileiras corre:
De espessa lã guieiro se me antolha
Que entre infindo passeia alvo rebanho."
Torna a Dial vergôntea: "Esse o prudente
Laércio Ulisses é, de Itaca rude,
Em todo estratagema e ardis sabido."
E Antenor: "A verdade, ó mulher, falas.
Por teu respeito aqui já veio Ulisses
De embaixador com Menelau: prestei-lhes
Uma franca e amigável hospedagem.
Discerni a cordura e o génio de ambos.
Eles em pé, dos Teucros no conselho,
Menelau sobranceiros tinha os ombros;
Sentados, o Laércio mais nobreza.
Não multíloquo e vago, embora jovem,
Sim conciso os discursos bem tecendo,
Razões argutas Menelau volvia.
Mas, se o ítaco a orar se levantava,
No chão pregada a vista, o ceptro imóvel,
Direito e sem pender, o creras homem
Inexperto, iracundo, ou quase louco;
Do imo ao soltar a voz, qual neve hiberna
As palavras em flocos lhe choviam:
Com ele então ninguém se comparasse;
Na facúndia e no gesto era um portento."
"Quem é, pergunta Príamo, o guerreiro
Que, espadaúdo e grande, a fronte acima
Dos Dânaos assoberba?" — "É, disse a nora,
Ajax, dos Gregos fortaleza e muro.
Idomeneu Cretense ali dos cabos,
Como um deus, se rodeia: ao vir de Creta,
De Menelau nos paços o acolhíamos.
Outros vejo daqui de negros olhos,
Que eu fácil nomeara; mas não vejo
Castor na picaria, insigne Pólux
No pugilato, príncipes das gentes,
Maternos meus irmãos: ou não largaram
Da leda Esparta, ou nos baixéis detidos,
Pejam-se de empenhar-se nas pelejas
Que, por meu vitupério, se prolongam".
Oculto lhe era que ambos já na doce
Pátria Lacedemónia descansavam.
Traziam da cidade os messageiros
As hóstias e odre cheio do jucundo
Bom licor de natio; Ideu cratera
Também traz luzidia e copos de ouro,
E assim convida o rei: "Sus, Laomedóncio;
Magnatas Frígios e emalhados Gregos
Rogam desças e o pacto nos confirmes.
De hastas com Menelau contenda Páris :
Quem vencer haja Helena e seus tesouros.
Ferida a paz, em Tróia ficaremos;
De cavalos fecunda aqueles Argos
E Acaia busquem de gentis mulheres."
Manda o coche arreiar trémulo o velho:
Obedecem-lhe; sobe e os loros tira;
Sobe Antenor com ele; os corredores,
Das portas Ceias despedidos, param.
Já do assento vistoso desmontados,
Entre Aqueus e Troianos caminhavam;
Ergue-se o mor Atrida e o cauto Ulisses.
Prestes as reses, na cratera o vinho
Os arautos resplendidos misturam,
Água às mãos régias cristalina vertem.
Puxa Agamémnon do cutelo, apenso
Da bainha da espada formidável,
Raspa a moleira às vítimas, e o pêlo
Os arautos aos próceres dividem;
Ele alça deprecando a voz e as palmas:
"Do Ida augusto senhor, máximo padre,
Sol que vês e ouves tudo, rios, Terra,
Vós que no inferno castigais perjuros,
Desta aliança fiadores sede.
Se Páris vence a Menelau, conserve
Toda a riqueza e a dama, e nós voguemos;
Se o vence o louro Atrida, aqui nos rendam
Helena e o seu tosouro, e por memória
Multa condigna paguem: morto Páris ,
Se Príamo e seus filhos ma refusam,
Té que os force ao dever, não largo as armas."
Nisto, as gargantas aos cordeiros sangra:
Exânimes no solo e palpitantes,
Do éreo instrumento ao gume a vida perdem.
Rasos os copos, a cratera esgotam,
E ao Supremo libando o voto expressam,
Ou cada Argivo ou Teucro: "Jove eterno
E mais deuses, no chão, como este vinho,
Dos que primeiro o pacto violarem
Esparjam-se os miolos e os dos filhos,
Sejam dos outros as mulheres suas."
Nada firma o Satúrnio, e o rei Dardânio:
"Ó Troas, balbucia, Aqueus, ouvi-me:
Volto a llion ventosa; que estes olhos
Entre o rival belígero e o meu Páris
O duelo cruel suster não podem.
Júpiter sabe e os imortais qual deles
Chamam seus fados." — O varão divino
Monta, no coche as vítimas coloca;
Tem consigo Antenor, e as rédeas bate:
Ambos à desfilada se recolhem.
Eis Ulisses e Heitor o espaço medem,
Eis num elmo sorteiam quem da lança
Aénea encete o bote. Frígio ou Graio,
Súplice as mãos estende e aos céus implora:
"Do Ida augusto senhor, máximo padre,
Quem quer que o mal causasse, a Dite o entregues;
Nós de amizade o pacto mantenhamos."
Sacode o elmo Heitor, e o rosto vira;
Sai o nome de Páris . Em fieira,
Têm seus donos ao pé cavalos e armas.
Arnesa-se Alexandre, o pulcro esposo
Da emadeixada Helena: as caneleiras
Com prata afivelando, ao peito a coira
Do irmão seu Licaon, que bem lhe quadra,
Lâmina aénea claviargêntea ombreia,
De grande escudo sólido se adarga;
Flutua-lhe à cabeça o capacete,
De crina e hórrida crista, primoroso;
Pique válido empunha. De iguais armas
Galhardo Menelau se adorna e veste.
De ponto em branco, ao meio avançam torvos:
Frio estupor, a tal conspecto, assalta
Bem grevados Aqueus e équites Frígios.
Sanhudos no recinto se acometem,
Hastas brandindo. A sua arroja Páris ;
Rasca o broquel do Atrida sem rompê-lo,
Da brônzea rigidez se amolga a ponta.
Menelau, por seu turno, impreca: "Ó Jove,
Dá-me a injúria anular que hauri primeira;
No sacrílego autor meu braço a puna.
De atraiçoar vindouros estremeçam
O hóspede lhano que os receba amigo."
A lança aqui desfere, que no instante
Ao Priâmeo entra aguda o reforçado
Fúlgido escudo, rasga-lhe a excelente
Loriga e malha, a túnica penetra
No quadril: curva-se ele e a morte esquiva.
De argênteos cravos puxa o Atrida o gládio,
Que na cimeira voa-lhe em pedaços;
Fitando os céus então, suspira e geme:
"És o mais sevo nume, ó tu Satúrnio,
Cuidei nesse traidor vingar a afronta:
Estalou-me nas mãos, oh! raiva, a espada,
E arremessei frustrâneo um tiro cego."
Nisto, pelo cocar o aferra e empuxa
Para os Aqueus: o pespontado loro
Que ao mento o elmo liga, a mole goela
Cerra e o sufoca; eterna glória obtendo,
Firme o arrastara, se a Dial Ciprina
Rapidamente não quebrasse o atilho,
De hóstia bovina espólio. O herói, sacado
O elmo vazio, a revoltões remete-o
Aos contentes consócios, que o recadam.
Por matá-lo inda enresta acesa lança;
Mas fácil, como deusa, em névoa grossa
Vénus o leva ao tálamo fragrante.
À torre mesma corre, onde acha Helena
Entre as Dardânias: unectário peplo
Abanando-lhe, o vulto imita e as rugas
Da fiel cardadeira que na Esparta
As lãs curava e as boas lhe escolhia;
Disfarçada comete-a: "Vem, que Páris
No toro conjugal te aguarda, filha:
Enfeitado e gentil, não de um combate
Livre o julgaras, sim que a dança o espera,
E que já de um folguedo refocila."
A Helena isto comove; mas, donoso
Vendo-lhe o seio, o colo de alabastro,
Dos olhos o fulgor, pávida exclama:
Bárbara, em fascinar-me assim prossegues?
Rojar-me intentas à Meónia ou Frigia?
Lá tens algum mimoso entre esses povos?
Quando, o guapo Alexandre hoje abatido,
Ré Menelau me aceita e me perdoa,
Traças com teus enganos empecer-nos ?
Vai tu própria; não ponhas pés no Olimpo.
Esquece os deuses, dele sempre ao lado,
Soporta-lhe o desdém, até que esposa
Tu sejas de um mortal, ou sua escrava.
Não mais, desse cobarde o leito ornando
Quero a fábula ser das Teucras damas,
Curtir nova desonra e mágoas novas."
E a deusa irada: "Não me apures, teme
Que eu te persiga, mísera, e aborreça
Quanto hoje te amo: excitarei discórdia,
Que os Dardânios e os Gregos exaspere,
E vítima serás de horrendos fados."
Estremece a Ledeia, e silenciosa,
Do peplo candidíssimo velada,
Às Troadas se furta, e a guia Vénus.
No palácio elegante apenas entram,
As servas todas no lavor se apressam;
Monta à câmara sua Helena bela.
Numa sede a coloca a mãe dos risos
Em face de Alexandre; aversa olhando
A do Egífero neta o argúi severa:
"Pois te salvaste? aos golpes sucumbisses
Do meu primeiro esposo! Em destra lança
E em forças te gabavas de excedê-lo:
Anda, provoca a Menelau brioso,
Torna ao duelo agora. Estulto, crê-me,
O louro Menelau nem mais encares,
Que da hasta e forte mão serás prostrado."
Brando se excusa Páris : "Doce Helena,
Com essas lancetadas não me punjas:
Venceu-me o Atrida por favor de Palas;
Deuses mais faustos me farão vencê-lo.
Vamos em nossa cama congraçar-nos:
Tal ardor nunca tive e tais desejos;
Nem quando, arrebatada à meiga Esparta,
Velejava contigo, e a vez primeira
Na ilha Cranaé do amor gozamos;
Hoje mais te apeteço e mais te anelo."
Então sobe adiante, e o segue a esposa;
No entalhado seu leito adormeceram.
Menelau, como fera, escuma e vaga
Em busca do formoso e divo Páris :
Nem Troa algum, nem ínclito aliado
Ao valente rival mostrá-lo pôde;
Que nenhum o escondera, a todos sendo
Ódio mortal. — Bradou-lhes Agamémnon:
"Teucros e auxiliares, atendei-me:
Claro a vitória a Menelau pertence;
Rendei pois a riqueza e Helena Argiva,
Multa pagai-nos que o porvir memore."
Dos seus o aplauso unânime retumba.