Reflexões sobre o projeto itinerários da digitalização do eu
"Não, eu não pretendo morrer sem luta e sem glória (akleios) como também sem algum feito cuja narrativa chegue aos homens por vir" Heitor antes de luta fatal com Aquiles.
Antes das epopeias de Homero, a única forma de permanência do sujeito na memória coletiva estava condicionada à circunstância de, depois de morto, ser cantado pelo aedo - caso em vida ousasse feitos gloriosos; e assim, pelo boca a boca dos poetas, tornar-se mito, imortal. Com Homero esses mitos que dependiam exclusivamente da memória e oralização destes poetas cantantes ganharam uma mídia material: os versos dodecassílabos da Ilíada e da Odisseia que nos dão acesso às personas de Heitor, Ulisses, Helena, Aquiles. Num salto chegamos aos retratos pintados por encomenda daqueles que pretendiam eternizar suas figuras: papas, reis, aristocratas. Séculos depois a fotografia não só tomou esse lugar como o popularizou. O cinema, num grau elevado, também garantiu a eternidade do corpos agora em movimento, olhares e depois timbres. Mas essa mídia-eternidade estava restrita à poucos eleitos, Chaplins e Garbos, mitos tão olímpicos quanto os das esculturas gregas. Dois passos adiante e chegamos ao agora: todos nós, quase que sem perceber, gerando dia a dia um acervo de memória sobre nossos corpos, gestos, vozes, pensamentos e elevando-os às nuvens binárias. Independentemente de feitos gloriosos, poder ou celebridade estamos nos digitalizando não apenas para um futuro distante mas para um futuro-semana-que-vem, e mesmo para o presente-ao-vivo do streaming, do skype.
Do aedo que constituía mitos, chegamos a esta década na qual somos aedos de nós mesmos. Homeros de nossa pequena epopeia. Não usamos o verso de doze sílabas mas o código binário que desconhecemos absolutamente. O-1 0-0 1-0 estamos subindo diariamente o nosso eu; e não apenas no sentido da constituição de um banco de dados digital sobre cada um de nós, mas também no sentido de que boa parte do ser que somos – supondo que de fato sejamos constituídos no outro, pelo olhar do outro – está se constituindo num campo de relações não concretas, relações digitais com o outro. Ou talvez, indo ao limite, tais relações digitais sejam intensas a tal ponto que possam dar conta de estabelecer relações concretas-digitais com o outro.
No limite do limite, um banco de dados do eu-digital poderá - via inteligência artificial (um algorítimo que reorganize meus discursos, falas-áudio e imagens) - garantir a eternidade do meu ser (concreto-digital) mesmo após a minha morte concreta-carnal. E entenda-se: não apenas como memória de narrativas de um corpo passado, mas como vida presente, mesmo que artificial/fantasmagórica. Nesta altura quem poderá atestar se estou morto ou vivo. Se sou corpo ou mito.
lourinelson 28/05/2011
sábado, 28 de maio de 2011
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