quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Antonio Candido

Antonio Candido indica 10 livros para conhecer o Brasil

13.05.17_Antonio Candido_10 livros para conhecer o Brasil
Quando nos pedem para indicar um número muito limitado de livros importantes para conhecer o Brasil, oscilamos entre dois extremos possíveis: de um lado, tentar uma lista dos melhores, os que no consenso geral se situam acima dos demais; de outro lado, indicar os que nos agradam e, por isso, dependem sobretudo do nosso arbítrio e das nossas limitações. Ficarei mais perto da segunda hipótese.
Como sabemos, o efeito de um livro sobre nós, mesmo no que se refere à simples informação, depende de muita coisa além do valor que ele possa ter. Depende do momento da vida em que o lemos, do grau do nosso conhecimento, da finalidade que temos pela frente. Para quem pouco leu e pouco sabe, um compêndio de ginásio pode ser a fonte reveladora. Para quem sabe muito, um livro importante não passa de chuva no molhado. Além disso, há as afinidades profundas, que nos fazem afinar com certo autor (e portanto aproveitá-lo ao máximo) e não com outro, independente da valia de ambos.
Por isso, é sempre complicado propor listas reduzidas de leituras fundamentais. Na elaboração da que vou sugerir (a pedido) adotei um critério simples: já que é impossível enumerar todos os livros importantes no caso, e já que as avaliações variam muito, indicarei alguns que abordam pontos a meu ver fundamentais, segundo o meu limitado ângulo de visão. Imagino que esses pontos fundamentais correspondem à curiosidade de um jovem que pretende adquirir boa informação a fim de poder fazer reflexões pertinentes, mas sabendo que se trata de amostra e que, portanto, muita coisa boa fica de fora. 
São fundamentais tópicos como os seguintes: os europeus que fundaram o Brasil; os povos que encontraram aqui; os escravos importados sobre os quais recaiu o peso maior do trabalho; o tipo de sociedade que se organizou nos séculos de formação; a natureza da independência que nos separou da metrópole; o funcionamento do regime estabelecido pela independência; o isolamento de muitas populações, geralmente mestiças; o funcionamento da oligarquia republicana; a natureza da burguesia que domina o país. É claro que estes tópicos não esgotam a matéria, e basta enunciar um deles para ver surgirem ao seu lado muitos outros. Mas penso que, tomados no conjunto, servem para dar uma ideia básica.
Entre parênteses: desobedeço o limite de dez obras que me foi proposto para incluir de contrabando mais uma, porque acho indispensável uma introdução geral, que não se concentre em nenhum dos tópicos enumerados acima, mas abranja em síntese todos eles, ou quase. E como introdução geral não vejo nenhum melhor do que O povo brasileiro (1995), de Darcy Ribeiro, livro trepidante, cheio de ideias originais, que esclarece num estilo movimentado e atraente o objetivo expresso no subtítulo: “A formação e o sentido do Brasil”.
Quanto à caracterização do português, parece-me adequado o clássico Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, análise inspirada e profunda do que se poderia chamar a natureza do brasileiro e da sociedade brasileira a partir da herança portuguesa, indo desde o traçado das cidades e a atitude em face do trabalho até a organização política e o modo de ser. Nele, temos um estudo de transfusão social e cultural, mostrando como o colonizador esteve presente em nosso destino e não esquecendo a transformação que fez do Brasil contemporâneo uma realidade não mais luso-brasileira, mas, como diz ele, “americana”. 
Em relação às populações autóctones, ponho de lado qualquer clássico para indicar uma obra recente que me parece exemplar como concepção e execução: História dos índios do Brasil (1992), organizada por Manuela Carneiro da Cunha e redigida por numerosos especialistas, que nos iniciam no passado remoto por meio da arqueologia, discriminam os grupos linguísticos, mostram o índio ao longo da sua história e em nossos dias, resultando uma introdução sólida e abrangente.
Seria bom se houvesse obra semelhante sobre o negro, e espero que ela apareça quanto antes. Os estudos específicos sobre ele começaram pela etnografia e o folclore, o que é importante, mas limitado. Surgiram depois estudos de valor sobre a escravidão e seus vários aspectos, e só mais recentemente se vem destacando algo essencial: o estudo do negro como agente ativo do processo histórico, inclusive do ângulo da resistência e da rebeldia, ignorado quase sempre pela historiografia tradicional. Nesse tópico resisto à tentação de indicar o clássico O abolicionismo (1883), de Joaquim Nabuco, e deixo de lado alguns estudos contemporâneos, para ficar com a síntese penetrante e clara de Kátia de Queirós Mattoso, Ser escravo no Brasil (1982), publicado originariamente em francês. Feito para público estrangeiro, é uma excelente visão geral desprovida de aparato erudito, que começa pela raiz africana, passa à escravização e ao tráfico para terminar pelas reações do escravo, desde as tentativas de alforria até a fuga e a rebelião. Naturalmente valeria a pena acrescentar estudos mais especializados, como A escravidão africana no Brasil (1949), de Maurício Goulart ou A integração do negro na sociedade de classes (1964), de Florestan Fernandes, que estuda em profundidade a exclusão social e econômica do antigo escravo depois da Abolição, o que constitui um dos maiores dramas da história brasileira e um fator permanente de desequilíbrio em nossa sociedade.
Esses três elementos formadores (português, índio, negro) aparecem inter-relacionados em obras que abordam o tópico seguinte, isto é, quais foram as características da sociedade que eles constituíram no Brasil, sob a liderança absoluta do português. A primeira que indicarei é Casa grande e senzala (1933), de Gilberto Freyre. O tempo passou (quase setenta anos), as críticas se acumularam, as pesquisas se renovaram e este livro continua vivíssimo, com os seus golpes de gênio e a sua escrita admirável – livre, sem vínculos acadêmicos, inspirada como a de um romance de alto voo. Verdadeiro acontecimento na história da cultura brasileira, ele veio revolucionar a visão predominante, completando a noção de raça (que vinha norteando até então os estudos sobre a nossa sociedade) pela de cultura; mostrando o papel do negro no tecido mais íntimo da vida familiar e do caráter do brasileiro; dissecando o relacionamento das três raças e dando ao fato da mestiçagem uma significação inédita. Cheio de pontos de vista originais, sugeriu entre outras coisas que o Brasil é uma espécie de prefiguração do mundo futuro, que será marcado pela fusão inevitável de raças e culturas.
Sobre o mesmo tópico (a sociedade colonial fundadora) é preciso ler também Formação do Brasil contemporâneo, Colônia (1942), de Caio Prado Júnior, que focaliza a realidade de um ângulo mais econômico do que cultural. É admirável, neste outro clássico, o estudo da expansão demográfica que foi configurando o perfil do território – estudo feito com percepção de geógrafo, que serve de base física para a análise das atividades econômicas (regidas pelo fornecimento de gêneros requeridos pela Europa), sobre as quais Caio Prado Júnior engasta a organização política e social, com articulação muito coerente, que privilegia a dimensão material. 
Caracterizada a sociedade colonial, o tema imediato é a independência política, que leva a pensar em dois livros de Oliveira Lima: D. João VI no Brasil (1909) e O movimento da Independência (1922), sendo que o primeiro é das maiores obras da nossa historiografia. No entanto, prefiro indicar um outro, aparentemente fora do assunto: A América Latina, Males de origem (1905), de Manuel Bonfim. Nele a independência é de fato o eixo, porque, depois de analisar a brutalidade das classes dominantes, parasitas do trabalho escravo, mostra como elas promoveram a separação política para conservar as coisas como eram e prolongar o seu domínio. Daí (é a maior contribuição do livro) decorre o conservadorismo, marca da política e do pensamento brasileiro, que se multiplica insidiosamente de várias formas e impede a marcha da justiça social. Manuel Bonfim não tinha a envergadura de Oliveira Lima, monarquista e conservador, mas tinha pendores socialistas que lhe permitiram desmascarar o panorama da desigualdade e da opressão no Brasil (e em toda a América Latina).
Instalada a monarquia pelos conservadores, desdobra-se o período imperial, que faz pensar no grande clássico de Joaquim Nabuco: Um estadista do Império (1897). No entanto, este livro gira demais em torno de um só personagem, o pai do autor, de maneira que prefiro indicar outro que tem inclusive a vantagem de traçar o caminho que levou à mudança de regime: Do Império à República (1972), de Sérgio Buarque de Holanda, volume que faz parte da História geral da civilização brasileira, dirigida por ele. Abrangendo a fase 1868-1889, expõe o funcionamento da administração e da vida política, com os dilemas do poder e a natureza peculiar do parlamentarismo brasileiro, regido pela figura-chave de Pedro II. 
A seguir, abre-se ante o leitor o período republicano, que tem sido estudado sob diversos aspectos, tornando mais difícil a escolha restrita. Mas penso que três livros são importantes no caso, inclusive como ponto de partida para alargar as leituras. 
Um tópico de grande relevo é o isolamento geográfico e cultural que segregava boa parte das populações sertanejas, separando-as da civilização urbana ao ponto de se poder falar em “dois Brasis”, quase alheios um ao outro. As consequências podiam ser dramáticas, traduzindo-se em exclusão econômico-social, com agravamento da miséria, podendo gerar a violência e o conflito. O estudo dessa situação lamentável foi feito a propósito do extermínio do arraial de Canudos por Euclides da Cunha n’Os sertões (1902), livro que se impôs desde a publicação e revelou ao homem das cidades um Brasil desconhecido, que Euclides tornou presente à consciência do leitor graças à ênfase do seu estilo e à imaginação ardente com que acentuou os traços da realidade, lendo-a, por assim dizer, na craveira da tragédia. Misturando observação e indignação social, ele deu um exemplo duradouro de estudo que não evita as avaliações morais e abre caminho para as reivindicações políticas. 
Da Proclamação da República até 1930 nas zonas adiantadas, e praticamente até hoje em algumas mais distantes, reinou a oligarquia dos proprietários rurais, assentada sobre a manipulação da política municipal de acordo com as diretrizes de um governo feito para atender aos seus interesses. A velha hipertrofia da ordem privada, de origem colonial, pesava sobre a esfera do interesse coletivo, definindo uma sociedade de privilégio e favor que tinha expressão nítida na atuação dos chefes políticos locais, os “coronéis”. Um livro que se recomenda por estudar esse estado de coisas (inclusive analisando o lado positivo da atuação dos líderes municipais, à luz do que era possível no estado do país) é Coronelismo, enxada e voto (1949), de Vitor Nunes Leal, análise e interpretação muito segura dos mecanismos políticos da chamada República Velha (1889-1930). 
O último tópico é decisivo para nós, hoje em dia, porque se refere à modernização do Brasil, mediante a transferência de liderança da oligarquia de base rural para a burguesia de base industrial, o que corresponde à industrialização e tem como eixo a Revolução de 1930. A partir desta viu-se o operariado assumir a iniciativa política em ritmo cada vez mais intenso (embora tutelado em grande parte pelo governo) e o empresário vir a primeiro plano, mas de modo especial, porque a sua ação se misturou à mentalidade e às práticas da oligarquia. A bibliografia a respeito é vasta e engloba o problema do populismo como mecanismo de ajustamento entre arcaísmo e modernidade. Mas já que é preciso fazer uma escolha, opto pelo livro fundamental de Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil (1974). É uma obra de escrita densa e raciocínio cerrado, construída sobre o cruzamento da dimensão histórica com os tipos sociais, para caracterizar uma nova modalidade de liderança econômica e política. 
Chegando aqui, verifico que essas sugestões sofrem a limitação das minhas limitações. E verifico, sobretudo, a ausência grave de um tópico: o imigrante. De fato, dei atenção aos três elementos formadores (português, índio, negro), mas não mencionei esse grande elemento transformador, responsável em grande parte pela inflexão que Sérgio Buarque de Holanda denominou “americana” da nossa história contemporânea. Mas não conheço obra geral sobre o assunto, se é que existe, e não as há sobre todos os contingentes. Seria possível mencionar, quanto a dois deles, A aculturação dos alemães no Brasil (1946), de Emílio Willems; Italianos no Brasil (1959), de Franco Cenni, ou Do outro lado do Atlântico (1989), de Ângelo Trento – mas isso ultrapassaria o limite que me foi dado.
No fim de tudo, fica o remorso, não apenas por ter excluído entre os autores do passado Oliveira Viana, Alcântara Machado, Fernando de Azevedo, Nestor Duarte e outros, mas também por não ter podido mencionar gente mais nova, como Raimundo Faoro, Celso Furtado, Fernando Novais, José Murilo de Carvalho, Evaldo Cabral de Melo etc. etc. etc. etc. 

* Artigo publicado na edição 41 da revista Teoria e Debate – em 30/09/2000
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Antonio Candido é sociólogo, crítico literário e ensaísta.

Philippe Gaulier.

"El método Stanislavski es una mierda muy grande"

Philippe Gaulier. Clown francés. Fundador de la Ecole Philippe Gaulier en Londres y París


Philippe Gaulier, en la Nau Ivanow de Barcelona. - E. BAYER

Philippe Gaulier, en la Nau Ivanow de Barcelona. - E. BAYER

Seguro de sí mismo. Un hombre con las ideas claras. El clown francés Philippe Gaulier no deja títere con cabeza en La torturadora (Éditions Filmiko), un libro donde, en forma de entrevista irreverente, maleducada y divertida, plasma su concepto de teatro, de clown, de interpretación. Un concepto que poco o nada tiene que ver con los métodos clásicos consagrados. Stanislavski debe estar revolviéndose en su tumba.
¿Qué es un clown?
Es alguien que quiere hacer creer que es muy importante, pero que básicamente es ridículo. Y está contento de serlo, no le da vergüenza. Es maravillosamente ridículo, como Don Quijote.
Entonces es consciente de su ridiculez...
Sus amigos se lo dicen: "Si yo fuera idiota como tú, sería un payaso". Entonces ha oído hablar de que quizá sí que sea un idiota. No lo tiene muy claro, pero de todas formas tiene cosas que decir, como todos los idiotas.
¿Qué papel juega el humor?
La vida sin humor no es vida. El humor es la sal: si no lo hay en una obra falta algo.
¿En cualquier género?
En todo. En la vida. En la tragedia también. Si vemos Medea tenemos que decir: ¡Qué bella! Pero también: ¡Qué bella actriz! Como espectador no estoy siempre con el personaje, muchas veces estoy con la actriz.
A eso se refiere cuando dice que es una tontería que se confundan actory personaje
Una grandísima tontería.
Sin embargo, segúnlos métodos clásicos...
Estos métodos clásicos son tan idiotas que sólo hablan de Diderot y del siglo XVIII. ¿Cómo se llamaba este idiota? Stanislavski, un tipo que ha aburrido a los rusos durante tanto tiempo... Ha convertido a los directores de escena en curas, que dicen: tú ahora debes sufrir, llorar como llorabas en el entierro de tu madre, acuérdate de tu madre ¡Esto es terrorismo y es lo que gusta a muchos profesores de teatro! Es una mierda, pero una mierda así de grande.
¿Qué les dice a sus actores?
No entro en sus vidas ni en su desdicha. Que lloren por el placer de emocionar al público. Nunca he trabajado alrededor de una mesa, con el texto encima.
¿Apuesta por improvisar?
El texto está escrito, pero a veces no sabemos cuál es el mejor ritmo y probamos diferentes cosas.
¿Cualquiera puede ser actor?
No. Hay gente que no tiene placer y hay gente muy aburrida. Hay que divertirse enseñando nuestro placer, vendiéndolo. Todos tenemos placer para dar. Y para venderlo, aunque para algunos eso es casi como ser una puta. Son unos aburridos, ¡que se dediquen a... ser farmacéuticos! La cuestión es que estos requisitos limitan mucho el número de gente que puede ser actor.
¿Hay muchos actoresque no lo sean?
Muchísimos. Otros son genios.
El actor tiene que transmitir sensaciones divirtiéndose y divirtiendo al espectador. ¿Se establece un pacto entre ellos?
El pacto es el juego. Quieren jugar y es una manera de divertirse. Si interpreta una tragedia griega transmitirá furia; si interpreta un vodevil hará reír.
Eso es naturalidad, y usted escribe que es importante no ser natural...
Yo abro mi imaginación viendo cómo los actores juegan entre ellos. Si voy a un manicomio y veo una escena trágica, mi imaginación no se divierte. Recibo un shock, me impresiona esa vida verdadera. En teatro, lo disfrutaría, porque es un juego: transmitir placer, no naturalidad.

fonte:http://www.publico.es/culturas/281507/el-metodo-stanislavski-es-una-mierda-muy-grande

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Boaventura de Sousa Santos


131128-Democracia

Democracia ou Capitalismo?



A democracia liberal foi derrotada pelo capitalismo e não me parece que seja derrota  reversível. Portanto, trata-se de inventar nova democracia
Por Boaventura de Sousa Santos 
No início do terceiro milênio as esquerdas debatem-se com dois desafios principais: a relação entre democracia e capitalismo; o crescimento econômico infinito (capitalista ou socialista) como indicador básico de desenvolvimento e de progresso. Nesta carta, centro-me no primeiro desafio.
Ao contrário do que o senso comum dos últimos cinquenta anos nos pode fazer pensar, a relação entre democracia e capitalismo foi sempre uma relação tensa, senão mesmo de contradição. Foi-o certamente nos países periféricos do sistema mundial, o que durante muito tempo foi chamado Terceiro Mundo e hoje se designa por Sul global. Mas mesmo nos países centrais ou desenvolvidos a mesma tensão e contradição esteve sempre presente. Basta lembrar os longos anos do nazismo e do fascismo.
Uma análise mais detalhada das relações entre capitalismo e democracia obrigaria a distinguir entre diferentes tipos de capitalismo e sua dominância em diferentes períodos e regiões do mundo e entre diferentes tipos e graus de intensidade de democracia. Nesta carta concebo o capitalismo sob a sua forma geral de modo de produção e faço referência ao tipo que tem vindo a dominar nas últimas décadas, o capitalismo financeiro. No que respeita à democracia centro-me na democracia representativa tal como foi teorizada pelo liberalismo.
O capitalismo só se sente seguro se governado por quem tem capital ou se identifica com as suas “necessidades”, enquanto a democracia é idealmente o governo das maiorias que nem têm capital nem razões para se identificar com as “necessidades” do capitalismo, bem pelo contrário. O conflito é, no fundo, um conflito de classes pois as classes que se identificam com as necessidades do capitalismo (basicamente a burguesia) são minoritárias em relação às classes (classes médias, trabalhadores e classes populares em geral) que têm outros interesses cuja satisfação colide com as necessidades do capitalismo.
Sendo um conflito de classes, afirma-se social e politicamente como um conflito distributivo: por um lado, a pulsão para a acumulação e concentração da riqueza por parte dos capitalistas e, por outro, a reivindicação da redistribuição da riqueza criada em boa parte pelos trabalhadores e suas famílias. A burguesia teve sempre pavor de que as maiorias pobres tomassem o poder e usou o poder político que as revoluções do século XIX lhe concederam para impedir que tal ocorresse. Concebeu a democracia liberal de modo a garantir isso mesmo através de medidas que mudaram no tempo mas mantiveram o objetivo: restrições ao sufrágio, primazia absoluta do direito de propriedade individual, sistema político e eleitoral com múltiplas válvulas de segurança, repressão violenta de atividade política fora das instituições, corrupção dos políticos, legalização dos lobbies. E sempre que a democracia se mostrou disfuncional, manteve-se aberta a possibilidade do recurso à ditadura, o que aconteceu muitas vezes.
No imediato pós-segunda guerra mundial, muito poucos países tinham democracia, vastas regiões do mundo estavam sujeitas ao colonialismo europeu que servira para consolidar o capitalismo euro-norte-americano, a Europa estava devastada por mais uma guerra provocada pela supremacia alemã, e no Leste consolidava-se o regime comunista que se via como alternativa ao capitalismo e à democracia liberal.
Foi neste contexto que surgiu na Europa mais desenvolvida o chamado capitalismo democrático, um sistema de economia política assente na ideia de que, para ser compatível com a democracia, o capitalismo deveria ser fortemente regulado, o que implicava a nacionalização de sectores-chave da economia, a tributação progressiva, a imposição da negociação coletiva e até, como aconteceu na então Alemanha Ocidental, a participação dos trabalhadores na gestão das empresas. No plano científico, Keynes representava então a ortodoxia económica e Hayek, a dissidência. No plano político, os direitos econômicos e sociais (direitos do trabalho, educação, saúde e segurança social garantidos pelo Estado) foram o instrumento privilegiado para estabilizar as expectativas dos cidadãos e as defender das flutuações constantes e imprevisíveis dos “sinais dos mercados”.
Esta mudança alterava os termos do conflito distributivo mas não o eliminava. Pelo contrário, tinha todas as condições para o acirrar logo que abrandasse o crescimento econômico que se seguiu nas três décadas seguintes. E assim sucedeu.
Desde 1970, os Estados centrais têm vindo a gerir o conflito entre as exigências dos cidadãos e as exigências do capital, recorrendo a um conjunto de soluções que gradualmente foram dando mais poder ao capital. Primeiro, foi a inflação (1970-1980), depois, a luta contra a inflação acompanhada do aumento do desemprego e do ataque ao poder dos sindicatos (1980-), uma medida complementada com o endividamento do Estado em resultado da luta do capital contra a tributação, da estagnação econômica e do aumento das despesas sociais decorrentes do aumento do desemprego (meados de 1980-) e, logo depois, com o endividamento das famílias, seduzidas pelas facilidades de crédito concedidas por um setor financeiro finalmente livre de regulações estatais, para iludir o colapso das expectativas a respeito do consumo, educação e habitação (meados de 1990-).
Até que a engenharia das soluções fictícias chegou ao fim com a crise de 2008 e se tornou claro quem tinha ganho o conflito distributivo: o capital. Prova disso: a conversão da dívida privada em dívida pública, o disparar das desigualdades sociais e o assalto final às expectativas de vida digna da maioria (os trabalhadores, os pensionistas, os desempregados, os imigrantes, os jovens em busca de emprego,) para garantir as expectativas de rentabilidade da minoria (o capital financeiro e seus agentes). A democracia perdeu a batalha e só não perderá a guerra se as maiorias perderem o medo, se se revoltarem dentro e fora das instituições e forçarem o capital a voltar a ter medo, como sucedeu há sessenta anos.
Nos países do sul global que dispõem de recursos naturais a situação é, por agora, diferente. Nalguns casos, como por exemplo em vários países da América Latina, pode até dizer-se que a democracia está a vencer o duelo com o capitalismo e não é por acaso que em países como a Venezuela e o Equador se tenha começado a discutir o tema do socialismo do século XXI — mesmo que a realidade esteja longe dos discursos. Há muitas razões para tal mas talvez a principal tenha sido a conversão da China ao neoliberalismo, o que provocou, sobretudo a partir da primeira década do século XXI, uma nova corrida aos recursos naturais.
O capital financeiro encontrou aí e na especulação com produtos alimentares uma fonte extraordinária de rentabilidade. Isto tornou possível que governos progressistas, entretanto chegados ao poder no seguimento das lutas e dos movimentos sociais das décadas anteriores, pudessem proceder a uma redistribuição da riqueza muito significativa e, em alguns países, sem precedente.
Por esta via, a democracia ganhou uma nova legitimação no imaginário popular. Mas por sua própria natureza, a redistribuição de riqueza não pôs em causa o modelo de acumulação assente na exploração intensiva dos recursos naturais e antes o intensificou. Isto esteve na origem de conflitos, que se têm vindo a agravar, com os grupos sociais ligados à terra e aos territórios onde se encontram os recursos naturais, os povos indígenas e os camponeses.
Nos países do sul global com recursos naturais mas sem democracia digna do nome oboom dos recursos não trouxe consigo nenhum ímpeto para a democracia, apesar de, em teoria, a mais fácil resolução do conflito distributivo facilitar a solução democrática e vice-versa. A verdade é que o capitalismo extrativista obtém melhores condições de rentabilidade em sistemas políticos ditatoriais ou de democracia de baixíssima intensidade (sistemas de quase-partido-único) onde é mais fácil a corrupção das elites, através do seu envolvimento na privatização das concessões e das rendas extrativistas. Não é pois de esperar nenhuma profissão de fé na democracia por parte do capitalismo extrativista, até porque, sendo global, não reconhece problemas de legitimidade política.
Por sua vez, a reivindicação da redistribuição da riqueza por parte das maiorias não chega a ser ouvida, por falta de canais democráticos e por não poder contar com a solidariedade das restritas classes médias urbanas que vão recebendo as migalhas do rendimento extrativista. As populações mais diretamente afetadas pelo extrativismo são os camponeses — em cujas terras estão as jazidas de minérios ou onde se pretende implantar a nova economia de plantation, agro-industrial. São expulsas de suas terras e sujeitas ao exílio interno. Sempre que resistem, são violentamente reprimidas e sua resistência é tratada como um caso de polícia. Nestes países, o conflito distributivo não chega sequer a existir como problema político.
Desta análise conclui-se que o futuro da democracia atualmente posto em causa na Europa do Sul é manifestação de um problema muito mais vasto que está a aflorar em diferentes formas nas várias regiões do mundo. Mas, formulado assim, o problema pode ocultar uma incerteza bem maior do que a que expressa. Não se trata apenas de questionar o futuro da democracia. Trata-se também de questionar a democracia do futuro.
A democracia liberal foi historicamente derrotada pelo capitalismo e não me parece que a derrota seja reversível. Portanto não há que ter esperança em que o capitalismo volte a ter medo da democracia liberal, se alguma vez teve. Esta última sobreviverá na medida em que o capitalismo global se puder servir dela. A luta daqueles e daquelas que veem na derrota da democracia liberal a emergência de um mundo repugnantemente injusto e descontroladamente violento tem de centrar-se na busca de uma concepção de democracia mais robusta cuja marca genética seja o anti-capitalismo.
Depois de um século de lutas populares que fizeram entrar o ideal democrático no imaginário da emancipação social seria um erro político grave desperdiçar essa experiência e assumir que luta anti-capitalista tem de ser também uma luta anti-democrática. Pelo contrário, é preciso converter o ideal democrático numa realidade radical que não se renda ao capitalismo. E como o capitalismo não exerce o seu domínio senão servindo-se de outras formas de opressão, nomeadamente, do colonialismo e do patriarcado, tal democracia radical, além de anti-capitalista tem de ser também anti-colonialista e anti-patriarcal.
Pode chamar-se revolução democrática ou democracia revolucionária — o nome pouco importa — mas é necessariamente uma democracia pós-liberal, que não aceita ser descaracterizada para se acomodar às exigências do capitalismo. Pelo contrário, assenta em dois princípios: o aprofundamento da democracia só é possível à custa do capitalismo; em caso de conflito entre capitalismo e democracia é a democracia real que deve prevalecer.
fonte: http://outraspalavras.net/destaques/democracia-ou-capitalismo/

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Malcolm Gladwell

Às quatro e meia da tarde da segunda-feira 1º/2/1960, quatro universitários se sentaram ao balcão da lanchonete de uma loja Woolworth’s no centro de Greensboro, na Carolina do Norte. Eram calouros na North Carolina A&T, faculdade para negros localizada a pouco mais de 1 km dali.
"Um café, por favor", disse um deles, Ezell Blair, à garçonete.
"Não atendemos crioulos aqui", ela respondeu.
O comprido balcão em L comportava 66 pessoas sentadas; numa das pontas, comia-se de pé. Os assentos eram para os brancos. A área onde se comia de pé era para os negros. Outra funcionária, uma negra encarregada da estufa, tentou convencê-los a sair: "Vocês estão sendo burros, seus ignorantes!". Eles não se mexeram.
Por volta das cinco e meia as portas principais da loja foram fechadas. Os quatro continuaram lá. Por fim, saíram por uma porta lateral. Do lado de fora, formara-se uma pequena multidão, incluindo um fotógrafo do jornal Record, de Grensboro. "Volto amanhã, com o A&T College inteiro", disse um dos universitários.
Na manhã seguinte, o protesto havia se expandido e o grupo somava 27 homens e quatro mulheres, em grande parte do mesmo alojamento dos quatro manifestantes originais. Os homens estavam de terno e gravata. Todos levaram material e ficaram no balcão, estudando. Na quarta, veio a adesão dos alunos do colégio "para crioulos" de Greensboro, a Dudley High, e o número de manifestantes subiu a 80. Na quinta, já eram 300, incluindo três brancas, do campus local da Universidade da Carolina do Norte.
No sábado, o protesto contava 600 pessoas, espalhadas pelas calçadas em torno da loja. Adolescentes brancos assistiam, acenando com bandeiras da Confederação [estados do sul dos EUA que se uniram contra os do norte do país durante a Guerra de Secessão (1861-65)]. Alguém soltou um rojão. Ao meio-dia, chegou o time de futebol americano da A&T. "Lá vêm os baderneiros", berrou um dos estudantes brancos.
Na segunda seguinte, o protesto já havia chegado a Winston-Salem, a 40 km dali, e Durham, a 80 km. No dia seguinte, veio a adesão dos alunos do Fayetteville State Teachers College e do Johnson C. Smith College, em Charlotte, seguidos, na quarta, pelos alunos do St. Augustine’s College e da Universidade Shaw, em Raleigh. Na quinta e na sexta, o protesto atravessou as divisas do Estado e novas manifestações surgiram em Hampton e Portsmouth, na Virgínia; em Rock Hill, na Carolina do Sul; e em Chattanooga, no Tennessee. No final do mês, manifestações semelhantes estavam sendo realizadas em todo o sul dos Estados Unidos, chegando até o Texas, no oeste.
Febre "Perguntei a cada um dos estudantes que encontrei como tinha sido o primeiro dia de protesto em seu campus", escreveu o cientista político Michael Waltzer, em artigo na revista Dissent. "A resposta foi sempre a mesma: ‘Foi uma febre. Todo mundo queria participar’."
Por fim, cerca de 70 mil estudantes aderiram. Milhares deles foram detidos, e outros tantos se radicalizavam. Esses acontecimentos do começo dos anos 60 se tornaram uma guerra dos direitos civis que engolfou o sul dos Estados Unidos até o final da década – e tudo aconteceu sem e-mail, mensagens de texto, Facebook ou Twitter.
Dizem que o mundo passa por uma revolução. As novas ferramentas de redes sociais reinventaram o ativismo social. Com Facebook, Twitter e que tais, a relação tradicional entre autoridade política e vontade popular foi invertida, o que facilita a colaboração mútua e a organização dos desprovidos de poder e dá voz às suas preocupações.
Revolução via Twitter Quando 10 mil pessoas saíram às ruas na Moldova, no leste europeu, segundo trimestre de 2009, em protesto contra o governo comunista, a ação ganhou o nome de revolução via Twitter, por causa dos meios utilizados para arregimentar os manifestantes.
Meses depois, quando protestos estudantis abalaram Teerã, o Departamento de Estado americano tomou a providência inusual de solicitar ao Twitter que suspendesse uma pausa programada para manutenção do site, pois o governo não desejava que uma ferramenta tão vital estivesse inativa no auge das manifestações. "Sem o Twitter, o povo do Irã não se teria sentido capaz e confiante o bastante para sair em defesa da liberdade e da democracia", escreveu o ex-assessor de segurança nacional Mark Pfeifle, clamando para que o Twitter ganhasse o Prêmio Nobel da Paz.
Se antes os ativistas eram definidos por suas causas, agora são definidos pelas ferramentas que empregam. Os guerreiros do Facebook entram na internet para pressionar por mudanças. "Vocês são a nossa grande esperança", disse James Glassman, ex-alto funcionário do Departamento de Estado, a uma plateia de ciberativistas em recente conferência patrocinada por Facebook, AT&T (companhia telefônica), Howcast (site de vídeos), MTV e Google.
Sites como o Facebook, disse Glassman, "oferecem aos EUA uma considerável vantagem competitiva diante dos terroristas. Algum tempo atrás, eu disse que `a Al Qaeda está jantando a gente na internet’. Já não é mais assim. A Al Qaeda continua parada na Web 1.0. A internet agora é interatividade e conversação".
Crítica São alegações fortes e intrigantes. Que importa quem janta quem na internet? As pessoas que estão no Facebook são mesmo a nossa grande esperança? Quanto à chamada revolução via Twitter na Moldova, Evgeny Morozov, pesquisador na Universidade Stanford que vem sendo um dos mais persistentes críticos do evangelismo digital, aponta que a importância do Twitter é quase nula na Moldova, onde existem pouquíssimas contas desse serviço.
E o que aconteceu lá tampouco parece ter sido uma revolução, especialmente porque as manifestações –como sugeriu Anna Applebaum em artigo no Washington Post – na verdade podem ter sido uma encenação organizada pelo governo. (Num país paranoico com o revanchismo romeno, os manifestantes hastearam uma bandeira da Romênia na sede do Parlamento.)
Já no caso do Irã, as pessoas que usaram o Twitter para comentar as manifestações viviam quase todas no Ocidente. "É hora de esclarecer o papel do Twitter nos acontecimentos do Irã", escreveu Golnaz Esfandiari meses atrás, na revista Foreign Policy. "Em resumo: no Irã, não houve revolução via Twitter."
O elenco de blogueiros proeminentes, como Andrew Sullivan, que defendeu o papel da rede social no Irã, acrescentou Esfandiari, não entendeu direito a situação. "Jornalistas ocidentais que não conseguiam – ou nem mesmo tentavam – se comunicar com gente no Irã simplesmente percorriam a lista de tweets em inglês, contendo a tag #iranelection" [no serviço de microblogs Twitter, as "tags" são termos precedidos do símbolo #, utilizados para reunir todas as mensagens sobre um mesmo assunto, como #ilustrissima.], escreveu ela. "Enquanto isso, ninguém parece ter se perguntado por que pessoas que supostamente tentavam coordenar os protestos no Irã não estariam se comunicando em farsi, mas em outro idioma".
Parte dessa grandiloquência é previsível. Inovadores tendem ao solipsismo. Volta e meia se empenham em enquadrar em seus novos modelos os fatos e experiências mais díspares.
Como escreveu o historiador Robert Darnton, "as maravilhas da tecnologia de comunicação no presente produziram uma falsa consciência sobre o passado -e até mesmo a percepção de que a comunicação não tem história, ou nada teve de importante a considerar antes dos dias da televisão e da internet".
Entusiasmo Mas há mais um fator em jogo nesse desproporcional entusiasmo em relação às redes sociais. Cinquenta anos depois de um dos mais extraordinários episódios de sublevação social na história dos EUA, parece que esquecemos o que é ativismo.
No começo dos anos 60, Greensboro era o tipo do lugar onde a insubordinação racial era rotineiramente reprimida com violência. Os quatro primeiros universitários a se sentar ao balcão reservado aos brancos estavam apavorados. "Se alguém tivesse chegado por trás de mim e gritado ‘bu’, acho que eu cairia no chão", disse um deles mais tarde.
No primeiro dia, o gerente notificou o chefe de polícia, que imediatamente enviou dois policiais para a loja. No terceiro dia, um grupo de brutamontes brancos apareceu na lanchonete e se postou ameaçadoramente atrás dos manifestantes, proferindo epítetos como "crioulo de cabelo ruim". Um líder local da Ku Klux Klan apareceu. No sábado, enquanto a tensão crescia, alguém telefonou e deu um alarme falso de bomba e a loja teve de ser evacuada.
Os perigos eram mais claros no Mississippi Freedom Summer Project de 1964, outra campanha pioneira do movimento pelos direitos civis. O Student Nonviolent Coordinating Committee recrutou centenas de voluntários não remunerados no norte dos EUA, quase todos brancos, para lecionar nas Freedom Schools, alistar eleitores negros e promover os direitos civis no sul profundo.
"Ninguém pode ir sozinho a lugar nenhum, muito menos de carro e à noite", eram as instruções dadas aos voluntários. Poucos dias depois de chegarem ao Mississippi, três deles –Michael Schwerner, James Chaney e Andrew Goodman – foram sequestrados e assassinados; até o final daquele verão, 37 igrejas negras seriam incendiadas e dezenas de casas usadas como abrigos foram atacadas com bombas; voluntários foram espancados, alvejados e perseguidos por picapes repletas de homens armados. Um quarto dos participantes do programa desistiram. Ativismo que desafia o status quo –e ataca problemas profundamente enraizados – não é para bundas-moles.
Compromisso O que leva uma pessoa a esse tipo de ativismo? Doug McAdam, sociólogo na Universidade Stanford, comparou os desertores do programa Freedom Summer com os que optaram por ficar, e descobriu que a diferença crucial, ao contrário do que se poderia esperar, não era o fervor ideológico. "Todos os inscritos – tanto os que ficaram quanto os que desistiram – estavam altamente comprometidos com a causa e eram partidários articulados das metas e valores do programa", concluiu.
O fator decisivo foi o grau de conexão pessoal entre a pessoa e o movimento pelos direitos civis. Pedia-se a todos os voluntários que fornecessem uma lista de contatos pessoais –as pessoas que desejavam manter a par de suas atividades–, e assim a probabilidade de ter amigos que também estivessem indo ao Mississippi era bem mais alta entre os que ficaram do que entre os que abandonaram o programa. O ativismo de alto risco, concluiu McAdam, é um fenômeno de "vínculos fortes".
O padrão se repete em boa parte de casos. Um estudo sobre as Brigate Rosse [Brigadas Vermelhas], grupo terrorista italiano dos anos 70, constatou que 70% de seus recrutas já tinham pelo menos um grande amigo na organização. O mesmo se aplica aos homens que aderiram aos Mujahideen do Afeganistão. Até mesmo manifestações revolucionárias que parecem espontâneas, como as que conduziram à queda do Muro de Berlim, na Alemanha Oriental, são, em seu âmago, fenômenos de vínculos fortes.
O movimento oposicionista da Alemanha Oriental consistia em centenas de grupos, cada qual formado por cerca de uma dúzia de membros. Cada grupo tinha contato limitado com os demais: na época, apenas 13% dos alemães orientais tinham telefone. Tudo o que sabiam era que, nas noites de segunda, diante da igreja de São Nicolau, no centro de Leipzig, as pessoas se reuniam para expressar sua ira contra o Estado. E o determinante primário daqueles que compareciam eram os "amigos críticos" – quanto mais amigos críticos ao regime uma pessoa tivesse, maior a probabilidade de adesão ao protesto.
Ligações Portanto, um fato crucial sobre os quatro calouros que foram à lanchonete segregada de Greensboro –David Richmond, Franklin McCain, Ezell Blair e Joseph McNeil – eram as ligações mútuas que mantinham. McNeil dividia o quarto com Blair no alojamento da A&T. No andar de cima, Richmond dividia o quarto com McCain; e Blair, Richmond e McCain foram alunos da Dudley High School.
Os quatro levavam cerveja às escondidas para o alojamento e conversavam noite afora, no quarto de Blair e McNeil. Tinham na memória o assassinato de Emmett Till, em 1955; o boicote aos ônibus de Montgomery, no Alabama, no mesmo ano; e o confronto em Little Rock, no Arkansas, em 1957.
Foi McNeil que apareceu com a ideia do protesto na Woolworth’s. Discutiram o assunto por quase um mês. Um dia, McNeil entrou no quarto e perguntou aos amigos se estavam prontos.
Houve uma pausa e McCain disse, de um jeito que só funciona entre amigos que passaram longas madrugadas conversando: "Vocês vão arregar ou vamos em frente?". Ezell Blair tomou coragem para pedir aquele café, no dia seguinte, porque estava na companhia de seu colega de quarto e de dois grandes amigos desde o ensino médio.
Vínculos fracos O ativismo associado às redes sociais nada tem em comum com isso. As plataformas dessas redes são construídas em torno de vínculos fracos. O Twitter é uma forma de seguir (ou ser seguido por) pessoas que talvez nunca tenha encontrado cara a cara. O Facebook é uma ferramenta para administrar o seu elenco de conhecidos, para manter contato com pessoas das quais de outra forma você teria poucas notícias. É por isso que se pode ter mil "amigos" no Facebook, coisa impossível na vida real.
Sob muitos aspectos, isso é maravilhoso. Há força nos vínculos fracos, como observou o sociólogo Mark Granovetter. Nossos conhecidos -e não nossos amigos- são a nossa maior fonte de novas ideias e informações. A internet nos permite explorar a potência dessas formas de conexão distante com eficiência maravilhosa.
É sensacional para a difusão de inovações, para a colaboração interdisciplinar, para integrar compradores e vendedores e para as funções logísticas das conquistas amorosas. Mas vínculos fracos raramente conduzem a ativismo de alto risco.
Virtudes Em um livro chamado The Dragonfly Effect – Quick, Effective, and Powerful Ways to Use Social Media to Drive Social Change [O Efeito Libélula – Maneiras Rápidas, Efetivas e Poderosas de Utilizar Redes Sociais para Promover Mudanças Sociais, ed. Jossey-Bass], o consultor de negócios Andy Smith e Jennifer Aaker, professora na escola de admininistração de empresas de Stanford, contam a história de Sameer Bhatia, jovem empresário do Vale do Silício que um dia descobriu estar sofrendo de leucemia mielálgica aguda. O caso serve como perfeita ilustração sobre as virtudes das redes sociais.
Bhatia precisava de um transplante de medula óssea, mas não encontrou doador entre seus parentes e amigos. As chances seriam maiores caso o doador tivesse sua etnia, e havia poucos doadores do sul da Ásia no banco de dados de medula óssea americano.
Por isso, o sócio de Bhatia enviou um e-mail no qual explicava o problema do amigo a mais de 400 de seus conhecidos, que por sua vez o encaminharam a seus contatos; páginas de Facebook e vídeos no YouTube foram criados para a campanha Help Sameer. Por fim, quase 25 mil novos doadores se inscreveram no banco de dados e Bhatia encontrou um compatível com ele.
Mas como a campanha conseguiu a adesão de tanta gente? Porque não pedia nada de mais aos participantes. É a única forma de conseguir que alguém que você não conhece de verdade faça alguma coisa em seu benefício. Dá para conseguir que milhares de pessoas se inscrevam como doadores porque fazê-lo é facílimo. Basta enviar uma amostra simples de material genético -no altamente improvável caso de que a medula óssea do doador seja compatível com alguém que precise- passar algumas horas no hospital.
Doar medula óssea não é trivial. Mas não envolve risco financeiro ou pessoal; não implica passar um verão inteiro sendo perseguido por picapes repletas de homens armados. Não requer confronto com normas e práticas sociais arraigadas. Na verdade, é o tipo do engajamento que só traz elogios e reconhecimento social.
Distinção Os evangelistas das redes sociais não compreendem essa distinção; parecem acreditar que um amigo de Facebook e um amigo real são a mesma coisa, e que se inscrever em uma lista de doadores no Vale do Silício, hoje, é ativismo no mesmo sentido que pedir um café num restaurante segregado de Greensboro em 1960.
"As redes sociais são especialmente eficazes para reforçar a motivação", escreveram Aaker e Smith. Mas não é verdade. As redes sociais são eficazes para ampliar a participação –mas reduzindo o nível de motivação que a participação exige.
A página da Save Darfur Coalition no Facebook tem 1.282.339 membros, cuja doação média é de nove centavos de dólar per capita. A segunda maior entidade de assistência a Darfur no Facebook tem 22.073 membros, e suas doações per capita são de 35 centavos de dólar. A Help Save Darfur tem 2.797 membros, que doaram, em média, 15 centavos de dólar.
Um porta-voz da Save Darfur Coalition disse à revista Newsweek que "não avaliamos necessariamente o valor de alguém para o movimento com base nos montantes doados. Este é um mecanismo poderoso para promover o envolvimento de uma população crítica. Eles informam a comunidade, participam de eventos, fazem trabalho voluntário. Não é algo que se possa medir por números".
Em outras palavras, o ativismo no Facebook dá certo não ao motivar pessoas para que façam sacrifícios reais, mas sim ao motivá-las a fazer o que alguém faz quando não está motivado o bastante para um sacrifício real. Estamos muito longe do balcão da lanchonete de Greensboro.
Campanha militar Os estudantes que participaram de protestos no sul dos EUA nos primeiros meses de 1960 descreveram o movimento como "uma febre". Mas o movimento dos direitos civis tinha mais de campanha militar que de contágio.
No final dos anos 50, 16 protestos semelhantes haviam sido organizados em diversas cidades sulistas, 15 dos quais formalmente coordenados por organizações de direitos civis como a NAACP [sigla em inglês da Associação Nacional para o Progresso da População de Cor] e a CORE [sigla em inglês de Congresso da Igualdade Racial]. Possíveis locais para protestos foram mapeados. Traçaram-se planos. Ativistas do movimento promoveram sessões de treinamento e retiros com potenciais participantes.
Os quatro de Greensboro surgiram como produto desse trabalho de base: eram membros do Conselho da Juventude da NAACP. Tinham fortes ligações com o diretor da seção local da organização. Foram informados sobre a onda anterior de protestos em Durham, e participaram de uma série de reuniões do movimento em igrejas ativistas.
Quando os protestos se espalharam pelo sul a partir de Greensboro, a difusão não ocorreu de modo aleatório. Os protestos surgiram em cidades que já tinham células do movimento -núcleos de ativistas dedicados e treinados, prontos para converter a "febre" em ação.
Alto risco O movimento dos direitos civis era ativismo de alto risco. Era também, e isso é importante, ativismo estratégico: um desafio ao establishment, montado com precisão e disciplina. A NAACP era uma organização centralizada, com comando em Nova York, segundo procedimentos operacionais altamente formalizados.
Na Southern Christian Leadership Conference, Martin Luther King Jr. (1929-68) exercia inquestionável autoridade. A igreja negra tinha posição central no movimento e, como aponta Aldon Morris em seu "The Origins of the Civil Rights Movement", esplêndido estudo publicado em 1984, mantinha uma divisão de tarefas cuidadosamente demarcadas, com diversos comitês permanentes e grupos disciplinados.
"Cada grupo tinha uma missão definida e coordenava suas atividades por meio de estruturas de autoridade", escreve Morris. "Os indivíduos eram responsáveis pelas tarefas que lhes eram designadas e conflitos importantes eram resolvidos pelo pastor, que em geral exercia a autoridade final sobre a congregação."
Hierarquia Essa é a segunda distinção crucial entre o ativismo tradicional e sua variante on-line: as redes sociais não se prestam a esse tipo de organização hierárquica.
O Facebook e sites semelhantes são ferramentas para a construção de redes e, em termos de estrutura e caráter, são o oposto das hierarquias. Ao contrário das hierarquias, com suas regras e procedimentos, as redes não são controladas por uma autoridade central e única. As decisões são tomadas por consenso, e os vínculos que unem as pessoas ao grupo são frouxos.
Essa estrutura torna as redes imensamente flexíveis e adaptáveis a situações de baixo risco. A Wikipédia é um exemplo perfeito. Não há um editor instalado em Nova York que direcione e corrija cada verbete. O esforço de produção de cada entrada é auto-organizado. Caso todos os verbetes da Wikipédia sejam apagados amanhã, o conteúdo será rapidamente restaurado, porque é isso que acontece quando uma rede de milhares de pessoas dedica tempo a uma tarefa espontaneamente.
Há, no entanto, muitas coisas que redes não fazem direito. As montadoras de automóveis, sensatamente, usam uma estrutura de rede para organizar suas centenas de fornecedores, mas não para projetar os carros. Ninguém acreditaria que a articulação de uma filosofia coerente de design funcionasse melhor na forma de um sistema organizacional disperso e sem líderes.
Carecendo de uma estrutura centralizada de liderança e de linhas de autoridade claras, as redes encontram dificuldades reais para chegar a consensos e estabelecer metas. Não conseguem pensar de modo estratégico; são cronicamente propensas a conflitos e erros. Como fazer escolhas difíceis sobre táticas, estratégias ou orientação filosófica quando todo mundo tem o mesmo poder?
Problemas A Organização para a Libertação da Palestina (OLP) surgiu como rede, e, em ensaio recentemente publicado no periódico International Security, os especialistas em relações internacionais Mette Eilstrup-Sangiovanni e Calvert Jones argumentam que esse é o motivo para que a organização tenha encontrado tantos problemas ao crescer: "Traços estruturais característicos das redes – ausência de autoridade central, autonomia irrestrita de grupos rivais e incapacidade de arbitrar disputas por meio de mecanismos formais – tornaram a OLP excessivamente vulnerável à manipulação externa e às disputas internas".
"Na Alemanha dos anos 70", os dois prosseguem, "os terroristas de esquerda, muito mais unidos e bem-sucedidos, tendiam a se organizar hierarquicamente, com gestão profissional e clara divisão de tarefas. Estavam geograficamente concentrados nas universidades, onde podiam estabelecer liderança central, confiança e camaradagem por meio de reuniões regulares, cara a cara".
Era raro que entregassem seus companheiros de armas nos interrogatórios da polícia. Já seus equivalentes na direita se organizavam como redes descentralizadas e não mantinham disciplina semelhante. Era comum que esses grupos fossem infiltrados, e que seus membros, quando detidos pela polícia, entregassem facilmente seus companheiros. De forma semelhante, a Al Qaeda era mais perigosa quando mantinha uma hierarquia unificada. Agora que se dissipou em rede, vem se mostrando bem menos eficaz.
Mudança sistêmica As desvantagens das redes pouco importam quando não estão interessadas em mudança sistêmica – caso desejem apenas assustar, humilhar ou fazer barulho –, ou quando não precisam pensar estrategicamente. Mas, se o objetivo é combater um sistema poderoso e organizado, é preciso uma hierarquia. O boicote ao serviço de ônibus em Montgomery exigiu a participação de dezenas de milhares de pessoas que dependiam do transporte público para ir ao trabalho e voltar todo dia. E durou um ano.
A fim de persuadir as pessoas a se manterem fiés à causa, os organizadores encarregaram cada igreja negra local de manter o moral alto e montaram um sistema alternativo de transporte solidário que contava com 48 telefonistas e 42 pontos de parada. Até mesmo o Conselho de Cidadãos Brancos, King afirmou mais tarde, reconheceu que o sistema de transporte solidário funcionava com "precisão militar".
Quando King foi a Birmingham, no Alabama, para o confronto decisivo com o comissário de polícia da cidade, Eugene "Bull" Connor, contava com orçamento de US$ 1 milhão e uma equipe de 100 funcionários em período integral, já instalados na cidade e divididos em células operacionais. A ação foi dividida em fases, que se intensificavam gradualmente e eram mapeadas com antecedência. O apoio foi mantido por meio de sucessivas assembleias, num rodízio entre as igrejas da cidade.
Legitimidade moral Boicotes, protestos e confrontos não violentos – armas preferenciais do movimento pelos direitos civis – são estratégias de alto risco. Deixam pouca margem para conflito e erro. No momento em que um único manifestante abandona o roteiro e reage a uma provocação, a legitimidade moral de todo o protesto fica comprometida. Os entusiastas das redes sociais sem dúvida gostariam que acreditássemos que a tarefa de King em Birmingham seria imensamente facilitada se ele pudesse usar o Facebook para se comunicar com seus seguidores e se contentasse em enviar tweets de uma cela.
Mas as redes são confusas –pense no padrão incessante de correção e revisão, emendas e debates, que caracteriza a Wikipédia. Caso Martin Luther King tivesse tentado um "wiki-boicote" em Montgomery, teria sido esmagado pela estrutura do poder branco. E que uso teria uma ferramenta de comunicação digital numa cidade na qual 98% da comunidade negra podia ser contatada na igreja, todo domingo? Em Birmingham, King precisava de disciplina e estratégia, o tipo de coisas que as redes sociais não são capazes de fornecer.
Poder de organização A bíblia do movimento das redes sociais é Here Comes Everybody, de Clay Shirky, professor na Universidade de Nova York. Ele procura demonstrar o poder de organização da internet e começa pela história de Evan, que trabalhava em Wall Street, e de sua amiga Ivanna, que esqueceu seu smart-phone, um caro Sidekick, no banco de um táxi nova-iorquino.
A companhia telefônica transferiu os dados do celular perdido de Ivanna a um novo aparelho e assim a proprietária e Evan descobriram que o Sidekick estava em posse de uma adolescente do Queens, que vinha usando o aparelho para tirar fotos de si mesma e de suas amigas.
Quando Evan lhe enviou um e-mail pedindo que devolvesse o celular, Sasha respondeu que ele era um "bundão branco" que não merecia tê-lo de volta. Irritado, ele montou uma página na web com uma foto de Sasha e uma descrição do ocorrido. Encaminhou o link aos amigos, que o repassaram a outros amigos. Alguém localizou a página do namorado de Sasha no MySpace e um link para ela foi criado no site.
Alguém descobriu o endereço dela na web e gravou um vídeo mostrando a casa quando passou de carro por lá; Evan postou o vídeo no site. A história ganhou destaque no Digg, um site agregador de notícias. Evan passou a receber dez e-mails por minuto. Criou um fórum on-line para que seus leitores contassem suas histórias, mas as visitas eram tantas que o servidor vivia caindo.
Evan e Ivanna procuraram a polícia, mas o boletim de ocorrência definia o celular como "perdido", e não "roubado", o que significava que, na prática, o caso estava encerrado.
"Àquela altura, milhões de leitores estavam acompanhando", escreve Shirky, "e dezenas de veículos da mídia convencional haviam mencionado a história". Cedendo à pressão, a polícia de Nova York reclassificou o celular como "roubado". Sasha foi detida e a amiga de Evan conseguiu o Sidekick de volta.
O argumento de Shirky é o de que esse é o tipo de coisa que jamais poderia ter acontecido na era anterior à internet – e ele tem razão. Evan não teria conseguido localizar Sasha.
A história do Sidekick jamais teria sido divulgada. Um exército de pessoas não se teria formado para participar da batalha. A polícia não teria cedido à pressão de uma pessoa só, por algo tão trivial quanto um celular perdido. O caso, na opinião de Shirky, ilustra "a facilidade e rapidez com que um grupo pode ser mobilizado para o tipo certo de causa" na era da internet.
Perigo Na opinião de Shirky, esse modelo de ativismo é superior. Mas, na verdade, não passa de uma forma de organização que favorece as conexões de vínculo fraco que nos dão acesso a informações, em detrimento das conexões de vínculo forte que nos ajudam a perseverar diante do perigo.
Transfere nossas energias das entidades que promovem atividades estratégicas e disciplinadas para aquelas que promovem flexibilidade e adaptabilidade. Torna mais fácil aos ativistas se expressarem e, mais difícil, que essa expressão tenha algum impacto.
Os instrumentos de redes sociais estão aptos a tornar a ordem social existente mais eficiente. Não são inimigos naturais do status quo. Se, na sua opinião, o mundo só precisa de um ligeiro polimento, isso não deve lhe causar preocupação. Mas se você acredita que ainda existem lanchonetes por serem integradas ao mundo, essa tendência deveria incomodá-lo.
Grandiloquente, Shirky encerra a história do Sidekick perdido perguntando: "O que virá a seguir?" –e, sem dúvida, imagina futuras ondas de manifestantes digitais.
Mas ele mesmo já respondeu à pergunta. O que virá é a mesma coisa, repetidamente. Um mundo feito de redes e vínculos fracos é bom para coisas como ajudar gente de Wall Street a recuperar celulares das mãos de garotas adolescentes. Viva la revolución.
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Jornalista, autor de O Que Se Passa na Cabeça dos Cachorros (Sextante). O texto desta edição foi publicado em 4/10/2010 na revista americana The New Yorker, onde o autor escreve desde 1996

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Outubro de 2010, portanto, dois meses antes do início da primavera árabe. fonte em inglês http://www.newyorker.com/reporting/2010/10/04/101004fa_fact_gladwell

quarta-feira, 24 de julho de 2013

PETER PÁL PELBART

Slavoj Zizek reconheceu no "Roda Viva" que é mais fácil saber o que quer uma mulher, brincando com a "boutade" freudiana, do que entender o Occupy Wall Street.
Não é diferente conosco. Em vez de perguntar o que "eles", os manifestantes brasileiros, querem, talvez fosse o caso de perguntar o que a nova cena política pode desencadear. Pois não se trata apenas de um deslocamento de palco --do palácio para a rua--, mas de afeto, de contaminação, de potência coletiva. A imaginação política se destravou e produziu um corte no tempo político.
A melhor maneira de matar um acontecimento que provocou inflexão na sensibilidade coletiva é reinseri-lo no cálculo das causas e efeitos. Tudo será tachado de ingenuidade ou espontaneismo, a menos que dê "resultados concretos".
Como se a vivência de milhões de pessoas ocupando as ruas, afetadas no corpo a corpo por outros milhões, atravessados todos pela energia multitudinária, enfrentando embates concretos com a truculência policial e militar, inventando uma nova coreografia, recusando os carros de som, os líderes, mas ao mesmo tempo acuando o Congresso, colocando de joelhos as prefeituras, embaralhando o roteiro dos partidos --como se tudo isso não fosse "concreto" e não pudesse incitar processos inauditos, instituintes!
Como supor que tal movimentação não reata a multidão com sua capacidade de sondar possibilidades? É um fenômeno de vidência coletiva --enxerga-se o que antes parecia opaco ou impossível.
E a pergunta retorna: afinal, o que quer a multidão? Mais saúde e educação? Ou isso e algo ainda mais radical: um outro modo de pensar a própria relação entre a libido social e o poder, numa chave da horizontalidade, em consonância com a forma mesma dos protestos?
O Movimento Passe Livre, com sua pauta restrita, teve uma sabedoria política inigualável. Soube até como driblar as ciladas policialescas de repórteres que queriam escarafunchar a identidade pessoal de seus membros ("Anota aí: eu sou ninguém", dizia uma militante, com a malícia de Odisseu, mostrando como certa dessubjetivação é condição para a política hoje. Agamben já o dizia, os poderes não sabem o que fazer com a "singularidade qualquer").
Mas quando arrombaram a porteira da rua, muitos outros desejos se manifestaram. Falamos de desejos e não de reivindicações, porque estas podem ser satisfeitas. O desejo coletivo implica imenso prazer em descer à rua, sentir a pulsação multitudinária, cruzar a diversidade de vozes e corpos, sexos e tipos e apreender um "comum" que tem a ver com as redes, com as redes sociais, com a inteligência coletiva.
Tem a ver com a certeza de que o transporte deveria ser um bem comum, assim como o verde da praça Taksim, assim como a água, a terra, a internet, os códigos, os saberes, a cidade, e de que toda espécie de "enclosure" é um atentado às condições da produção contemporânea, que requer cada vez mais o livre compartilhamento do comum.
Tornar cada vez mais comum o que é comum --outrora chamaram isso de comunismo. Um comunismo do desejo. A expressão soa hoje como um atentado ao pudor. Mas é a expropriação do comum pelos mecanismos de poder que ataca e depaupera capilarmente aquilo que é a fonte e a matéria mesma do contemporâneo --a vida (em) comum.
Talvez uma outra subjetividade política e coletiva esteja (re)nascendo, aqui e em outros pontos do planeta, para a qual carecemos de categorias. Mais insurreta, de movimento mais do que de partido, de fluxo mais do que de disciplina, de impulso mais do que de finalidades, com um poder de convocação incomum, sem que isso garanta nada, muito menos que ela se torne o novo sujeito da história.
Mas não se deve subestimar a potência psicopolítica da multidão, que se dá o direito de não saber de antemão tudo o que quer, mesmo quando enxameia o país e ocupa os jardins do palácio, pois suspeita que não temos fórmulas para saciar nosso desejo ou apaziguar nossa aflição.
Como diz Deleuze, falam sempre do futuro da revolução, mas ignoram o devir revolucionário das pessoas.
PETER PÁL PELBART, 57, filósofo húngaro, é professor titular de filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, tradutor de Deleuze e autor de "Vida Capital"

quarta-feira, 22 de maio de 2013

segunda-feira, 15 de abril de 2013

ELIANE ROBERT MORAES - Crítica da erótica desbotada

Crítica da erótica desbotada

ELIANE ROBERT MORAES
ESPECIAL PARA A FOLHA
 
O sucesso da trilogia "Cinquenta Tons" traz questões de fundo que demandam reflexão. Não se trata de discutir se os livros têm ou não algum valor literário. Para confirmar a baixa qualidade do texto, basta ler um ou dois parágrafos. O curioso, porém, é que tal evidência não reduz o fenômeno a mero problema sociológico, como acontece com a maior parte dos best-sellers. O fato de se concentrar na encenação de fantasias sexuais e, mais ainda, de explorar o delicado limiar entre o prazer e a dor, faz desses livros um caso particular, acrescido da novidade de que seu público é formado quase exclusivamente por mulheres.
Lançado em 2011, o "mummy porn", como foi logo batizado, se tornou um fenômeno editorial no ano passado e, ao que tudo indica, promete atravessar 2013 ostentando novos números de tirar o fôlego. São milhões e milhões de leitores, espalhados pelos quatro cantos do mundo, que sustentam a base de uma pirâmide que movimenta milhões e milhões de dólares. Efetivamente, o domínio aqui é o do excesso.
Engana-se, porém, quem associa o excesso das cifras mercadológicas ao excesso sexual que se reconhece como pedra de toque dos grandes títulos do erotismo literário. Nada a ver, portanto, com um romance como "História de O" (Ediouro), que causou furor ao ser lançado, em 1954, cativando tanto o público quanto a crítica.

Angeli
Ilustração de Angeli para a edição de 14 de abril da "Ilustríssima"
Ilustração de Angeli para a edição de 14 de abril da "Ilustríssima"
Assinado por Pauline Réage, pseudônimo da misteriosa Dominique Aury, o livro escandalizou ao pôr em cena uma heroína que se abandona ao papel de escrava sexual para se precipitar no absoluto de um êxtase que nem a morte consegue deter. Visto por muitos como um texto místico e não raro comparado aos escritos de Santa Teresa d'Ávila, "História de O" é um exemplo acabado daquela literatura erótica perturbadora, que produz em nós um imperioso deslocamento sensível e mental. Nada a ver, mesmo, com a tosca trilogia de E.L. James, que não tira nada nem ninguém do lugar.
O conto de fadas da mocinha virgem que se apaixona pelo milionário altivo e bonitão repete uma velha fórmula que responde aos anseios femininos de uma paixão impossível e avassaladora. Sob um discreto "décor" de luxo, a ingênua Anastasia se vê capturada pelos encantos do jovem empresário Christian Grey, que lhe retribui o interesse com demonstrações de amor pouco ortodoxas.
É ele quem decide desde os livros que ela, estudante de letras, deve ler, até as maneiras ousadas de como deve "explorar sua sensualidade e seus limites". É também ele a decidir que as práticas necessárias a tal exploração devem ser seguras e consensuais, como manda o figurino, e que a relação de ambos deve ser pautada pelos termos de um contrato, como manda sua condição social. Com hierarquias e regras das mais convencionais, o enredo chega a ser puritano e, não fossem as tais cenas de sexo, seria de perguntar qual a novidade que ele traz.
Acontece que, até agora, a literatura "adulta" de grande público era destinada exclusivamente ao leitor masculino, a exemplo do que sempre ocorreu com revistas pornográficas e outras edições do gênero. Talvez E.L. James seja a primeira escritora de massa que, sem motivações feministas, tenha destinado ao leitorado feminino uma ficção, narrada por uma mulher, em torno do sexo explícito e até mesmo "hardcore".
Vale insistir, pois, que o livro nada tem em comum com tentativas passadas de criar uma pornografia, digamos, "libertária", a começar por aquela voga de publicações focadas na conquista da "liberação sexual" que rendeu títulos populares nos anos 1970, como "O Relatório Hite", "A Mulher Sensual" ou "The Joy of Sex". Prova disso é que não há nem sequer uma linha que evoque aquela "sexualidade feminina" reclamada pelas herdeiras de Simone de Beauvoir e muito menos aquela "escrita erótica feminina" exaltada pelas seguidoras de Anaïs Nin.
A bem da verdade, esse diferencial não constitui um problema em si, e a iniciativa seria bem-vinda se implicasse a superação de certas palavras de ordem do feminismo, já bastante gastas. Longe disso, porém, a equação que o romance coloca é de outro naipe.
PODER
Se a grande novidade está no combinado de ingredientes picantes e sentimentais que dá às leitoras de hoje acesso à velha "leitura reservada aos homens", as razões de seu sucesso não se esgotam aí. Nas entrelinhas, "Cinquenta Tons" sugere também um estranho desejo, que parte das mulheres, de refletir sobre os jogos de poder nas relações amorosas.
No centro da trama está a relação entre o macho dominador e a fêmea submissa. Diversamente dos orgasmos, que são frequentes e múltiplos, o "happy ending" prometido a cada página, e a cada volume, é sempre postergado por causa de um grande segredo que viria a explicar as taras do herói e alçaria enfim os pombinhos à felicidade almejada. Enquanto isso não acontece, o par se abandona às incansáveis cenas eróticas que desfilam, uma a uma, diante do leitor e progridem em paralelo à sujeição da heroína.
Seria demasiado simples ver aí apenas a confirmação da desigualdade entre os sexos. Ao colocar a simbólica repressão feminina a serviço do desejo, a trilogia transfere as tradicionais imagens da submissão para o obscuro plano da fantasia, no qual se revela o tempo forte da personagem e de suas leitoras. Talvez se possa pensar numa nostalgia de certa feminilidade que já não tem lugar no mundo atual, ou então numa curiosidade sobre o papel "passivo" que ficou interditado a um grande contingente de mulheres urbanas nos últimos tempos.
Nada garante, porém, que haja aí uma intenção de volta para trás, pois o devaneio erótico sempre pode representar o negativo das experiências sexuais que essas mesmas mulheres vêm vivendo com seus parceiros. Se assim for, ganha particular sentido o fato de que o sadomasoquismo seja completamente romantizado na trama.
Ora, que delícias um príncipe encantado sádico pode reservar ao público feminino contemporâneo?
Antes de tudo, é de se crer que ele possa prometer um mar de sensações ao qual esse público não deve ser insensível. Mais importante, porém, é o fato de que sua persona ostenta todos os requisitos necessários para engendrar a fantasia de uma entrega total, fusional e sem reservas. Como, então, interpretar a improvável virgindade da heroína, senão por sua deliberação de se guardar para uma experiência desse quilate, sonhando com o dia em que forçosamente se abandonaria às mãos de um homem todo-poderoso?
Escusado dizer que, se as leitoras se identificam com a casta Anastasia, não é por compartilharem de sua condição, mas precisamente porque, nessa condição inverossímil, ela pode lhes oferecer a imagem de uma entrega absoluta cada vez menos provável nas relações amorosas. De outro lado, o herói também se propõe como peça-chave desse imaginário, já que sua impassível figura impõe um desafio de grande porte para a mulher moderna: afinal, conseguir dobrá-lo pode ser um troféu e tanto, seja para provar o infalível "poder feminino", seja para provar o infalível "poder do amor".
Há muita ambiguidade aí e, por certo, ela diz respeito às ambiguidades que envolvem as tramas de amor e de poder entre os sexos na sensibilidade contemporânea. Se já não é mais tão fácil saber "quem domina quem" ou "quem se submete a quem", muito menos é adequar o sonho da entrega amorosa às exigências de um individualismo cada vez mais implacável. O problema dos limites revela-se crucial e não há respostas prontas para a interrogação que fica pairando no ar: até onde se pode ir?
IMPASSES
Até onde ir? -esta é, com efeito, a questão nodal de "Cinquenta Tons". Formulada em termos puramente sexuais no desenrolar do enredo, a pergunta torna-se uma metáfora potente dos impasses da vida amorosa nos dias de hoje. Daí que a inquietação da personagem ecoe tão profundamente no espaço da leitura. E isso talvez seja o que há de mais interessante neste livro tão pouco interessante, rendido aos clichês mais óbvios do romantismo pop.
Tome-se, a título de exemplo, uma das cenas finais do primeiro volume, quando a heroína é amarrada a uma cama de quatro colunas e vendada com uma máscara. "Ah, seu toque provoca um estremecimento delicioso. [...] nossa... já estou a ponto de explodir. Por que isso é tão erótico?"
Já algemada, a jovem tem seu corpo percorrido por uma luva de pele à qual se seguem as tiras do açoite, que lhe rendem "uma agonia doce", num crescendo que progride conforme a música ambiente: "O coro recomeça... mais forte, mais forte, e ele me dá uma saraivada de golpes... e gemo e me contorço. Mais uma vez, o coro cessa e tudo fica em silêncio... a não ser minha respiração descontrolada... e meu desejo descontrolado. Por... ah... o que está acontecendo? O que ele vai fazer agora?"
Mais uns parágrafos nessa lenga-lenga e "ele recomeça a se movimentar... saindo e entrando..." e "vai aumentando o ritmo. Acompanhando a intensidade da peça coral com uma precisão infinitesimal -é muito controlado... está totalmente no compasso da música. E eu não consigo suportar mais".
A passagem, aqui bem resumida, ocupa seis páginas do erotismo romântico mais chinfrim, nas quais o frenesi exclamatório só perde para a volúpia das reticências, num festival de repetições e de gerúndios que, por si só, denunciam o valor do novo folhetim.
Em que pese a nota erudita do jovem sádico -ao ensinar sua discípula que a música é "um moteto para quarenta vozes de Thomas Tallis"-, sua escolha de acessórios SM faz jus ao texto, recaindo sobre os produtos mais batidos do mercado sexual, como algemas, máscaras, luvas e chicotes. Tudo trabalha para acomodar Eros aos mais estreitos limites do realismo.
Estranha, pois, que o livro seja às vezes comparado aos clássicos literários do sadismo e do masoquismo -que, diga-se de passagem, jamais se juntam numa só palavra. Ao inconcebível teatro das paixões que a literatura de Sade oferece aos seus leitores, expondo diante deles um erotismo sem freios nem fronteiras, se opõem as desbotadas fantasias desses "tons de cinza", que se rendem não só aos signos mais óbvios do consumismo como também às bagatelas da ideologia do "politicamente correto".
Testemunho disso dá o contrato que o milionário "negocia" com a universitária, cujas cláusulas supõem tanto a frequentação de salões de beleza, a contratação de um personal trainer e a compra de roupas quanto a observação de "procedimentos de segurança" que protegem a jovem contra danos "físicos, mentais, emocionais, espirituais ou outros" (sic). Aqui até mesmo as perversões se submetem a uma orientação "correta", reiterada nas pautas higiênicas (como a interdição de manipular excrementos) e mesmo ecológicas (como a proibição do sexo com animais) que os libertinos sadianos tanto gostam de subverter.
Não pense o leitor que a impossibilidade de aproximar E.L. James a Sade vá conduzi-la diretamente aos braços de Léopold von Sacher-Masoch, também invocado como um dos inspiradores do best-seller. Convém recordar que, se o livro do escritor austríaco se vale igualmente de um contrato entre algoz e vítima, não é jamais para restringir as atividades da dominadora para com seu fiel servo, mas antes para ampliá-las ao infinito.
Ao se dirigir à sua senhora, o protagonista de "A Vênus das Peles" (Hedra), de 1870 se oferece como o mais servil dos escravos: "Sem qualquer limite, tua propriedade, sem vontade, para que disponhas de mim a teu bel-prazer, e que disso não tenhas o menor arrependimento. Enquanto saboreias a vida em todas as suas nervuras, enquanto desfrutas em opulento luxo da serena felicidade, do amor do Olimpo, eu gostaria de calçar e descalçar seus sapatos". Sem limites nem "procedimentos de segurança", o contrato não exclui nem mesmo a morte do submisso.
De fato, tais comparações nos colocam diante de continentes distintos, um completamente estranho ao outro. Entre o desejo de absoluto que preside a erótica de um Sade ou de um Sacher-Masoch e o desejo de inclusão que orienta o imaginário da tola trilogia não há um só ponto em comum.
Bem adequados à sensibilidade contemporânea, os romances da autora inglesa e seus congêneres jamais criam um mundo sexual autônomo, onde prevalecem os desregramentos da imaginação, mas antes preferem conformar suas fantasias ao que está na ordem do dia. Daí que seu apelo "sadomasoquista" faça eco tanto à parafernália dos "sex shops" quanto ao erotismo radical e previsível dos clubes SM, que são frutos da mesma demanda de inclusão evidenciada no best-seller.
Tudo leva a crer, portanto, que o sucesso dos "soft porn" também responde aos anseios de uma época em que certa ideia de marginalidade perdeu seu poder de fogo e igualmente seu glamour. Cultivado por muitos escritores que se dedicaram à erótica literária -de Jean Genet a Henry Miller, de Bukowski a Roberto Piva-, o desejo de estar à margem da sociedade, de ficar fora do "sistema", parece reunir cada vez menos adeptos.
O marginal, vestido de bom moço, vem cedendo lugar ao excluído e, em vez da transgressão, o que ele reivindica agora é sua inclusão. Desnecessário dizer que, uma vez "incluído", o sexo fica esvaziado da sua capacidade de perturbação, do seu poder de desvio e, sobretudo, da sua vocação subversiva.
O que sobra é pouco: uma sexualidade conformada às exigências da ordem social; um erotismo reduzido às demandas da utilidade. Impossibilitados de recorrer ao absoluto de seus imaginários, sádicos e masoquistas devem se dar as mãos para formar um par e, de quebra, serem felizes para sempre.
Eis a promessa do casal Grey e Anastasia: perfeitamente adaptados ao jogo dos papéis sociais, eles enfim brindam o "sadomasoquismo" com seus porta-vozes ideais. Não por acaso, isso ocorre num momento em que a prática da transgressão vem sendo cada vez mais normalizada pelo mercado.
Nessa economia, como se vê, muita coisa se perde. Para começar, perde-se a possibilidade de contemplar o vazio que fundamenta todo excesso erótico genuíno. A saber, o vazio primordial que está na origem da nossa existência, da nossa imaginação e das nossas fantasias mais singulares, já que não há criação que prescinda de um espaço em branco inaugural.
Nesse sentido, a trilogia de E.L. James pode ser alinhada a um empenho obstinado da indústria cultural para saturar, até a exaustão, esse vazio, alienando-nos do contato com seus perigos, seus horrores e também suas maravilhas. Ao reiterar os apelos sexuais que não cessam de nos assediar, condenando o erotismo à plena visibilidade, a tralha midiática oferece um repertório fechado e pronto de imagens, que funciona como um fast food do sexo. Mas isso ainda não esgota a questão.
Se livros como os de Sade ou de Sacher-Masoch tendem a gerar resistências -e, não raro, desistências-, isso acontece porque, aos olhos de quem os lê, eles parecem insuportáveis. Parecem e efetivamente o são -e por isso mesmo, quando lidos, produzem um deslocamento fundamental em seus leitores. Afinal, só consegue vencer a resistência quem aceita sair da zona de conforto. E isso beira o insuportável quando se trata dessa literatura, que nada tem de palatável e muito menos de "soft".
De fato, os artífices do excesso não douram a pílula: insistem em mostrar o horror como horror, não importa a qualidade de prazer que seus personagens possam tirar dele. Em suma, por mais absurdas que sejam as paixões descritas nesses textos, por mais que elas se associem ao sofrimento, seus autores nunca a esvaziam de uma gravidade essencial.
É precisamente essa gravidade que se perde na pornografia leviana de "Cinquenta Tons". E é ela, obviamente, que nunca comparece na platitude dos discursos de seus protagonistas, como a seguinte fala do professoral Mr. Grey: "Há uma linha muito tênue entre prazer e dor, Anastasia. São os dois lados da mesma moeda, e não há um sem o outro. Posso lhe mostrar quão prazerosa pode ser a dor".
Poupemos o leitor do restante da passagem: não é difícil perceber que os lugares-comuns operam aí no sentido de neutralizar a gravidade do enunciado, trivializando-o ao máximo. A alusão aos "dois lados da mesma moeda" confere certa naturalidade aos intercâmbios entre o prazer e a dor, enquanto a "linha tênue" sugere uma leveza no mínimo suspeita. Tudo concorre para simplificar o que não pode, nem deve, ser simplificado.
Nunca é demais lembrar, pois, que a ideia do sofrimento como fonte de prazer sempre pode sensibilizar espíritos menos bem-intencionados que o mocinho sádico e a ingênua masoquista do best-seller. É de temer, inclusive, que a simplificação desse discurso acabe caindo em mãos erradas e sirva a interesses escusos, ainda mais num mundo em que mulheres são espancadas em casa, e gays nas ruas. Afinal, o que deixa de inquietar já está a meio caminho de se tornar "natural". E o que deixa de ter gravidade está apenas a um passo de se banalizar.
Serão esses os efeitos colaterais da inofensiva leitura da nova pornografia romântica? Talvez. E talvez, no fundo, a expressão "mummy porn" queira realmente dizer que os perversos da hora estão pedindo o colo da mamãe, mas sem jamais colocar em questão o jugo do papai. Resta saber o que tudo isso tem a ver com aquela erótica militarizada que, poucos anos atrás, fez a festa de um bando de rapazes e mocinhas que se entediava nos sombrios corredores de Abu Ghraib.

sábado, 13 de abril de 2013

Camille Paglia


“Prostitutas, strippers, pornografia, estes são os meus ideais da Babilônia. Em livros como Vamps & Tramps, lutei pró-feminismo contra os hipócritas e filisteus do Establishment feminista.
A rápida expansão global da Slutwalk demonstra a energia e as aspirações das jovens feministas. Mas sua mensagem confusa é um sintoma do caos sexual e anomia da burguesia ocidental.
Não chame a si mesmo de vagabunda, a menos que você esteja preparada para viver e defender-se como uma. Meu credo é um feminismo alerta, cauteloso, militante, o duro código de sobrevivência de prostitutas e drag queens.
O sexo é uma força da natureza, e não apenas uma construção social. (…) Meninas superprotegidas de classe média  têm uma visão perigosamente ingênua do mundo. Elas não conseguem ver a animalidade e primitivismo do sexo, historicamente controlada pelas tradições da religião e da moralidade, agora firmemente dissolvendo-se no Ocidente. A revolução sexual vencida pela minha geração nos anos 1960 é uma faca de dois gumes.”

Em texto para a imprensa britânica, em 2011