Por José Arbex Jr.
Quando comecei a ler o já famoso texto de César Benjamin: “Os filhos do Brasil”, publicado pelo jornal Folha de S. Paulo em 27 de novembro, fiquei orgulhoso de ser da esquerda. E mais ainda: de ter compartilhado com o autor do texto alguns momentos emocionantes de nossa luta comum, como o final da marcha do MST para Brasília, em 1997, quando me encontrei pessoalmente com ele, pela primeira vez. Os parágrafos iniciais do texto são primorosos. Muito bem escritos, compõem uma narrativa densa, sedutora, que vai criando no leitor uma vontade de querer saber mais sobre uma história que nunca foi contada direito: a história da ditadura militar, dos porões, das torturas, das prisões, dos seres humanos condenados à ignomínia. Benjamin soube retratar com grande humanidade os seus companheiros temporários de cela. Resgatou-lhes a história, a identidade, a face profundamente humana.
Mas aí, veio a facada, o golpe inesperado, a decepção, a tristeza profunda. Benjamin relatou, no mesmo texto, uma conversa supostamente mantida com Luís Inácio Lula da Silva, em São Paulo, em 1994, durante a campanha à Presidência do Brasil. Lula teria “confessado”, então, entre amigos, que, na prisão, tentou seduzir, sem sucesso, um militante de uma organização de esquerda. Benjamin faz uma comparação entre o assédio descrito por Lula e o temor que ele mesmo, Benjamin, sentiu, quando preso, de ser “currado” por outros detentos.
Não entendi nada. Li de novo, reli, tentei buscar alguma ironia oculta, algo que justificasse, no plano do próprio texto, o absolutamente injustificável paralelo entre estupradores que pululam nas prisões brasileiras – em geral, seres humanos reduzidos a condições quase completamente animalescas pelo próprio sistema carcerário, e/ou por uma vida anterior mergulhada na mais profunda miséria econômica, ideológica e afetiva – e Lula, que não estuprou ninguém, mas que, supostamente, comentou ter sentido o desejo de manter relações sexuais com um companheiro de cela que não cedeu aos seus desejos. Não quis acreditar que alguém dotado com os recursos intelectuais de Benjamin, adquiridos ao longo de sua longa história de luta pela liberdade e pela dignidade humana, pudesse cair em um pântano tão sórdido e profundo. Mas não encontrei nada no texto de Benjamin que permitisse uma interpretação positiva. Ou melhor: encontrei “o” nada: o vazio absoluto; vazio de sentido, o vazio da total falta de perspectivas, o vazio de um rancor desmedido.
(Antes de prosseguir, esclareço logo: não sou e nunca fui “lulista”; não sou mais já fui petista; não simpatizo com a maioria das medidas de governo adotadas por Lula, e por isso sou totalmente favorável à crítica de esquerda ao seu governo. Mais precisamente, creio que Lula pode e deve ser criticado por aquilo que fez, mas acho muito estranho ele ser atacado por aquilo que NÃO praticou.)
Vamos agora considerar, por um segundo, que Lula realmente fez o que supostamente disse ter feito. Isto é, que em dado momento tentou seduzir – seduzir, note bem, não estuprar -- o colega de cela. E daí? O que se pode concluir disso? Qual seria, nesse caso, o crime de Lula? O exercício, o desejo da homossexualidade? Estaremos, então, diante de um texto homofóbico?
Ainda segundo o próprio Benjamin, como já observado, Lula teria comentado o caso numa roda de amigos. Estamos, então, diante de um gravíssimo precedente, aberto pelo próprio Benjamin. De hoje em diante, todos teremos que suspeitar dos nossos amigos, teremos que nos policiar para que nossas palavras não sejam, eventualmente, atiradas contra nós por algum “traíra”, algum “dedo duro”, algum “cagueta”, algum Judas, algum oportunista que resolva tirar proveito de uma situação de cumplicidade. Revivemos, então, a era da delação (Premiada? Que o prêmio, no caso, teria sido pago a Benjamin?), a era da intriga, da fofoca, da futrica, da artimanha, da safadeza. Que vergonha! (Isso tudo me faz lembrar a famosa oração de Marco Antônio, no brilhante texto de Shakespeare: “Poderoso César, terás então descido a tão baixo nível?”)
Benjamin utilizou a imprensa dos patrões para atacar um expoente do movimento de esquerda do Brasil. Claro, claro, claro: sempre se pode alegar que Lula não é de esquerda, como ele mesmo já disse e como eu, pessoalmente, avalio. Mas há um abismo entre considerações de caráter individual, feitas por indivíduos privados e isolados, ou mesmo por grupos e seitas, e a realidade política concreta, historicamente determinada pela luta de classes. No contexto brasileiro, em que as alternativas concretas ao governo Lula (e à sua imagem refratada Dilma Rousseff) são figuras sinistras como as de José Serra e Aécio Neves, Lula surge como um expoente à esquerda do espectro político, com algumas conseqüências importantes para a luta de classes na América Latina: por exemplo, a condução exemplar do governo brasileiro no caso de Honduras (embora feiamente chamuscada pelo desastre no Haiti), a recusa em avalizar o acordo das bases militares estadunidenses com a Colômbia e a denúncia permanente do bloqueio de Cuba. Para não mencionar o fato de que a figura de Lula, malgré lui même, inspira movimentos de resistência ao capital em todo o mundo. Disso não se conclui, automaticamente, que a esquerda deva, necessariamente, apoiar o governo Lula, ou mesmo apostar na eleição de Dilma. Ao contrário, deve aproveitar as contradições, os paradoxos e as ambigüidades para fortalecer o seu próprio campo. Mas Benjamin preferiu fortalecer as correntes representadas pelo jornal dos campos Elíseos.
Não por acaso, a Folha de S. Paulo cedeu o espaço todo pedido por Benjamin. Cederia mais, se necessário fosse. Benjamin conhece a teoria marxista e sabe, com Gramsci, que a mídia dos patrões é o verdadeiro organizador coletivo, é o grande partido do capital. Triste é o fato de ele ter arregaçado as mangas para trabalhar por tal partido. E pior: Benjamin sabe que o falso paralelo que tentou traçar entre os predadores das prisões da ditadura e o prisioneiro Lula seria muito mais verdadeiro se, no lugar de Lula, ele colocasse os donos dos jornais para os quais hoje escreve.
Todo o encanto produzido pelos primeiros parágrafos do texto de César Benjamin foi transformado em fel a partir do momento em que se instaurou a delação, o oportunismo, o absurdo. Lula não estuprou o seu companheiro de cela, mas Benjamin violentou, com alto grau de sadomasoquismo, a própria consciência e uma história repleta de glórias. Requiescate in pace.
quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
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