Em 14 de agosto de 2009, o site do Instituto Humanitas Unisinos publicou a entrevista abaixo. Nela Marcuse e Neil Brenner, professor de sociologia e de estudos metropolitanos da New York University, discutiam a crise econômica mundial e seus efeitos na geografia das cidades, das nações e do mundo.
De que modo a crise pode ser uma oportunidade para a esquerda e os movimentos sociais?
Peter Marcuse - O ponto de partida para se entender quais são os limites e as possibilidades para a esquerda nessa crise econômica é a situação atual do mercado imobiliário, particularmente o das cidades. Nos EUA, existe a grande solidariedade para com aqueles que perdem a casa própria, e se multiplicam as tentativas para evitar as desapropriações. Entre os mais radicais, há um movimento de ocupação das casas confiscadas, ativo em várias regiões: em Nova Iorque, assume o nome de Picture the Homeless; em Miami, chama-se Take Back the Land. Os ativistas ajudam as pessoas a ocupar as casas que ficaram vazias, conquistando assim muita simpatia por parte da população. Quando questionados sobre quais são os seus objetivos, respondem muitas vezes que estão conscientes de que as suas ações são ilegais e que as famílias de ocupantes deverão, cedo ou tarde, ir embora. O que buscam fazer é só tornar públicas as tragédias de quem foi jogado para fora de sua própria casa. O passo seguinte, logicamente, deve ser o reconhecimento de que o livre mercado é o instrumento errado para distribuir as casas e que os edifícios ocupados devem ser colocados de modo permanente ao serviço de quem tem necessidade deles. Porém, esse raciocínio não é feito. A recente formação e crescimento de movimentos sociais radicais é indubitável. Ao mesmo tempo, não conseguem explicitar o caráter político das suas reivindicações.
Neil Brenner - Se as pessoas entendessem que essa é a lógica inevitável do capitalismo, chegaríamos a uma crítica sistemática e a uma solução. Não se trata de corrigir alguns "casos isolados" de expulsão de pessoas que se encontraram em "circunstâncias infelizes". A situação atual é o resultado de mais de uma década de especulação de um mercado imobiliário orientado a tirar lucro das faixas mais frágeis da população.
Quais são, então, os efeitos da crise econômica nas metrópoles norte-americanas?
Peter Marcuse - Até o momento, há mudanças significativas no modo em que o capitalismo intervém nas cidades. Mas as hierarquias do poder podem se modificar, mesmo que ainda não esteja claro em qual direção. É grande a possibilidade de que ocorra algo na frente política, o que influenciaria o governo das cidades. Com a eleição de Obama, houve um deslocamento geral para a esquerda, mesmo que certamente não de um modo radical. Se difundiu, assim, a necessidade de um papel mais forte das instituições públicas e de uma maior regulação da economia de mercado. Além disso, não há mais uma aceitação acrítica do papel central das finanças no setor do desenvolvimento urbanístico. Ao mesmo tempo, o uso que está sendo feito das ajudas de Estado indicam a importância contínua, senão crescente, do setor financeiro.
Neil Brenner - A pergunta que a esquerda deve se colocar não é "crise ou estabilidade", mas o que diferencia esta crise das outras. Esta, de fato, é uma ocasião para “politicizar” a financeirização da economia em geral e da economia urbana em particular. O papel dos negócios como mecanismo central do capitalismo foi dado por óbvio, enquanto subentende decisões e relações de força que decidem a distribuição dos recursos públicos. É com isso que hoje devemos nos confrontar de modo muito explícito e em todos os níveis: local, nacional e global.
Peter Marcuse - A palavra chave é "politicizar". Isso ainda não ocorreu. A desconfiança no setor financeiro não está muito longe de se tornar uma crítica do capitalismo, mas essa possibilidade continua nas margens da discussão pública, o que coloca em evidência os limites no funcionamento da democracia representativa. Sugere-se que a unidimensionalidade produzida pelo sistema é muito profunda. Porém, quando Obama fala nos campi universitários, as questões levantadas se referem à necessidade de prevenir os abortos em vez de limitar o poder de Wall Street.
Pode-se falar, portanto, de uma distância, senão de uma ruptura, entre o nível da representação democrática e o dos fenômenos sociais que se manifestam nas metrópoles?
Neil Brenner - Uma das respostas poderia ser esta: as instituições representativas garantem um certo nível de direitos civis propedêuticos à busca de outras formas de democracia radical. Porém, a questão é outra, isto é, se os movimentos globais operam para afirmar um projeto de democracia popular ou de autogestão mais radical do que os procedimentos eleitorais, sobre os quais se baseia a democracia parlamentar. Devemos nos perguntar se os processos de reestruturação econômica global nas últimas duas décadas, além de limitar os movimentos sociais, contribuíram para o surgimento de novas estratégias nessa direção nas cidades de todo o mundo.
Peter Marcuse - Eu vejo uma situação de grande ambiguidade. O lugar em que a democracia direta é possível são as cidades, o nível local, porque é ali que vivem os homens e as mulheres. O descontentamento com relação a essa crise expressa-se nas cidades e, em certa medida, nas políticas urbanas. Mas o fenômeno não é local, mas nacional e global. Por isso, temos respostas ambíguas: a indignação se expressa em nível local, mas o seu objetivo é supralocal. Uma consequência negativa da crise nas políticas locais é a subordinação dos problemas relativos à qualidade de vida ou aos salários e à distribuição dos recursos às medidas pelo crescimento econômico. É isso que está ocorrendo em Nova Iorque, onde a administração está investindo em infraestruturas na lower Manhattan para obter maior desenvolvimento econômico, em vez de investir nas escolas públicas, na saúde. Nessa situação de crise, a longa duração do domínio da esfera econômica terá efeitos negativos sobre os movimentos sociais progressistas em nível local.
A globalização, em todas as suas formas, coloca em jogo a relação entre o capital e a transformação espacial do mundo. Que relação existe hoje entre o desenvolvimento capitalista e a criação de novos espaços?
Neil Brenner - A transformação espacial está no centro da acumulação de capital, porque a extração da mais-valia implica a criação de uma rede global de infraestruturas para facilitar a acumulação. Essa questão está no coração do nosso projeto "Cidades para as pessoas, não para o lucro". De um lado, há processos de acumulação e de mercantilização que produzem vários modos de apropriação do espaço orientado ao lucro. De outro, há lutas para se apropriar do espaço pelo uso popular, pela reprodução social. Mas o limite entre mercantilização e reprodução social é flutuante. A crise evidenciou a extensão crescente da mercantilização do mercado imobiliário e a oposição que ele encontrou. Este é um conflito sobre a produção do espaço. Assume formas diferentes com relação a 30, 50 ou 150 anos atrás, mas é endêmico ao capitalismo como o conflito para extrair mais-valia do trabalho.
Peter Marcuse - A crise foi produzida pela busca de lugares posteriores para o investimento de capital: os salários não eram suficientes para que o setor imobiliário produzisse frutos em termos de investimentos, por isso decidiu-se estender o crédito para produzir lucro. Quando os salários não são suficientemente altos para pagar novamente o crédito, tem-se uma crise como esta.
Nos EUA, a teoria crítica não se manifesta mais nos âmbitos do pensamento político ou da ciência política, mas nos estudos de geografia e de urbanística crítica. Por quê? Isso tem a ver com os processos de globalização e desnacionalização?
Neil Brenner - A partir dos anos 80, assistimos a uma significativa rearticulação do espaço político-econômico. Alguns estudiosos falaram disso em termos de globalização, desterritorialização ou desnacionalização. Eu prefiro falar de "rescaling", de redefinição das escalas espaciais. Um dos desafios hoje é dar sentido a essas novas geografias. Penso que o termo "desnacionalização" é problemático. A dimensão nacional é significativa em termos estruturais e políticos, assim como era no passado, mas está inserida em um contexto geográfico que mudou. Portanto, é necessário compreender a rearticulação do nível nacional com o nível local e o mundial da autoridade política. A União Europeia é um caso de estudo muito importante para se compreender essa nova configuração do espaço político e da autoridade política a partir do novo sistema de relações entre nacionais, subnacionais e supranacionais. Trata-se de um redimensionamento do espaço político nacional mais do que a sua dissolução.
Peter Marcuse - A geografia tem uma relação mediata com o político. Se tivermos que analisar o que está acontecendo nos EUA com a crise utilizando os instrumentos de uma boa ciência política, a conclusão seria imediatamente que uma revolução é útil. Se levarmos em consideração o sistema espacial, é preciso fazer algumas inferências posteriores antes de chegar à mesma conclusão, porque, introduzindo o nível espacial, produz-se uma formulação mediata da crise. Estou surpreso pelo fato de que a geografia é hoje mais radical do que a ciência política ou a economia, porque, em certo sentido, é ilógico. A crise subjacente se refere às relações econômicas e políticas na sociedade, e o espaço é um instrumento para influenciá-las e estruturá-las, mas é um reflexo disso.
:::
Um livro virtual que quer sair da tela
"Cities for People, not for Profit" é um projeto nascido por ocasião de um seminário ocorrido em Berlim por razão dos 80 anos de Peter Marcuse. Os materiais ali apresentados compõem um livro ainda virtual, mas sobre o qual já se falou tanto dentro quanto fora da tela. O jornal londrino The City falou a respeito, enquanto no sítio www.informaworld.com pode-se ler e baixar contribuições posteriores e reflexões sobre a tese que reúne os diversos ensaios iniciais. Para os autores, seguindo os estudos de David Harvey sobre o papel do espaço no atual regime flexível de acumulação capitalista, as metrópoles têm uma relevância estratégica para garantir o fluxo dos capitais, das mercadorias, da força de trabalho e para definir o laço entre dimensão local, nacional e supranacional na globalização econômica.
Estudiosos do tecido urbano
Peter Marcuse nasceu em Berlim em 1928. Vive nos EUA desde 1933, quando pai Herbert, para fugir do regime nazista, se transferiu para Nova Iorque. Professor e estudioso de urbanística, escreveu de modo extenso sobre a construção do mercado imobiliário e sobre o impacto das crises econômicas no tecido urbano. Particularmente devem ser destacados "Globalizing Cities: A New Spatial Order?" e "Of States and Cities: the Partitioning of Urban Space". Sobre a queda do Muro de Berlim e o processo de unificação alemã, ele publicou "Missing Marx: A Personal and Political Journal on a Year in East Germany, 1989-1990". Por ocasião do seu 80º aniversário, foi realizada uma conferência em Berlim em novembro sobre o tema do direito à cidade e sobre as perspectivas da teoria crítica aplicada à urbanística. Assim nasceu o livro "Cities for People, not for Profit", junto com Neil Brenner. Este último, sociólogo político urbano, trabalhou na redescoberta, nos EUA, do trabalho do geógrafo radical francês Henri Lefebvre. Organizou, junto com Stuart Elden, a tradução de alguns escritos do geógrafo francês recolhidos no livro "State, Space, World: Selected Essays". Entre os trabalhos recentes de Brenner estão "Global Cities Reader", "New State Spaces: Urban Governance and the Rescaling of Statehood" e "Spaces of Neoliberalism: Urban Restructuring in Western Europe and North America"
sexta-feira, 19 de março de 2010
sexta-feira, 12 de março de 2010
Chico de Oliveira
entrevista publicada em 24 de julho de 2006
"A única coisa que o PSOL pode fazer [na política nacional] é ser uma espécie de Grilo Falante, uma espécie de consciência crítica", afirma Francisco de Oliveira. Não se trata de incapacidade específica da legenda, mas da constatação, ele diz, de que a política se tornou completamente irrelevante. Entre as causas deste fato, para ele incontornável, estão a financeirização da economia -que tira a autonomia de decisões dos governos nacionais- e a quebra das identidades de classe e sua representação em partidos políticos -também decorrente das transformações recentes do capitalismo. Na entrevista a seguir, Oliveira relaciona o Bolsa-Família e a política de cotas para negros a esse fim da política e diz que o PT pós-Lula pode ter o mesmo destino do peronismo argentino -com a criação de grupos gangsterizados que disputariam o espólio da penetração política e simbólica, a partir de programas sociais, entre os mais pobres. O sociólogo relaciona ainda o crescimento da facção criminosa PCC e os recentes ataques em São Paulo ao desenvolvimento do capitalismo no país, que, de acordo com ele, funciona em parte na ilegalidade e "não respeita nenhuma institucionalidade". A seguir, trechos da conversa, realizada em seu escritório, em São Paulo.
FOLHA - Como o sr. vê a subida de Heloísa Helena no Datafolha? Como o sr. vê suas chances eleitorais?
FRANCISCO DE OLIVEIRA - Ela pode crescer mais alguns pontos, mas não para passar dos 15%. Não acredito. O eleitorado que vai votar em Heloísa é fácil de se presumir. São ex-petistas, desiludidos com o PT, e, de outro lado, gente não necessariamente partidarizada decepcionada com o governo Lula ou que acha que o Alckmin não é nada. É nessa faixa que ela navega e vai crescer no máximo até 15%.
FOLHA - O sr. fazia a avaliação, já há algum tempo, de que havia um esgotamento da política, de sua capacidade de representar possibilidade de mudança. O sr. acha que a candidatura dela e o PSOL podem representar uma saída para isso?
OLIVEIRA - Seria desejável, mas eu não acredito. O fenômeno da irrelevância da política é muito profundo. A candidatura agora, ou outra do PSOL repetida no futuro, será uma espécie de desafogo, mas com muito poucas chances de ser majoritária e muito poucas chances de tornar-se hegemônica e sobretudo de pautar politicamente. Os partidos não têm noção das raízes dessa irrelevância da política. Nem o PSOL. Ele imagina que pode refazer um partido tal como o PT foi na sua origem.
FOLHA - Não há possíveis semelhanças entre Heloísa Helena e o Lula nos anos 80?
OLIVEIRA - Apesar de tudo, não há nenhuma semelhança entre os dois partidos. No sentido de bases e de poder pautar a política brasileira. O PT pautou. A única coisa que o PSOL pode fazer é ser uma espécie de Grilo Falante, uma espécie de consciência crítica, mas sem possibilidades de hegemonia, sem possibilidades sequer de pautar a política brasileira. Essa é uma conclusão muito dura, para mim mesmo e para os militantes em geral. É preciso pesquisar as razões da irrelevância da política hoje, e não só no Brasil. Aqui, isso tem um efeito devastador. Aqui, o fundo da irrelevância da política é a desigualdade. Não é mais plausível, para nenhum de nós, que você possa, por meio da política, atravessar o Rubicão. Não é mais possível. A formação do PT foi algo muito específico. É preciso não esquecer que ele se formou dentro da ditadura, com um movimento sindical em ascensão, numa espécie de eco de um Estado de Bem-Estar privatizado. Trabalhadores de certos ramos, sobretudo do metalúrgico, tinham planos de benefícios muito importantes. Era privatizado porque eram as empresas que davam. Esse movimento estava em ascensão -não como agora, que está em refluxo. E é importante não esquecer que aconteceu simultâneo a um movimento de democratização muito importante. Foi dentro desse movimento que o PT nasceu. Esse conjunto é irrepetível. As forças sindicais foram muito desgastadas. A queda de sindicalização é vertical. Os petroleiros foram arrasados pelo Fernando Henrique Cardoso. Além disso há um movimento de reestruturação produtiva, misturado à globalização, que devastou as fileiras do operariado. Não tem a conjuntura e a estrutura de forças que fizeram o PT. O movimento sindical, tal como o conhecemos, e tal como ele formou a pauta social e política dos anos 70, não existe mais. Aquele tipo de movimento sindical não existe mais e não existirá. O PSOL está, portanto, em busca de uma miragem.
FOLHA - Há alguma relação entre isso que o sr. descreve e o governo Lula?
OLIVEIRA - Tomem a última declaração de bens de Lula. A metade de seu patrimônio está em aplicações financeiras. O paradoxo é que ele está à testa de um governo que endivida o país, e essa dívida é parte do seu patrimônio. É a cobra mordendo o próprio rabo. É apenas emblemático. Onde ele aplica? Como não é um especulador da bolsa, provavelmente em títulos da dívida pública. Não é só o Lula. Quem tiver um pouco de dinheiro vai fazer a mesma coisa. Ele aumenta o patrimônio graças ao endividamento do governo que preside. Sua posição política é completamente irrelevante. Faça o que fizer, está amarrado nessa financeirização do Estado. Isso não começou com ele, evidentemente. Seu governo até faz um esforço de reduzir a relação da dívida com o PIB. Com o Fernando Henrique, isso foi de 1 para 10. Isso financeirizou a economia e amarrou-a às determinações de fora. Este é o fator principal da irrelevância da política. Todas as relações sociais estão mediadas agora pela relação externa. A política interna perdeu a capacidade de dirigir a sociedade. Qualquer que seja a relação, ela tem que passar pelas relações externas. Isso quebra na espinha a política. Política é escolha. Política é opção. Mais ou menos, todos agora têm que seguir a mesma regra.
FOLHA - O sr. não reconhece nenhum mérito na política social do governo Lula, no Bolsa-Família? O sr. chegou a dizer que Lula exclui os trabalhadores da política, quando perguntado sobre o programa e as possíveis relações entre Lula e Getúlio Vargas.
OLIVEIRA - As analogias entre Lula e Getúlio estão sendo propagandeadas aos quatro ventos. Até ele, quando líder sindical contrário a todas as criações sindicais da era varguista, até Lula agora quer se identificar com o Getúlio. Reafirmo: são antípodas. Lula não tem nada que ver com Getúlio. É o oposto. Lula não é populista, porque ele não faz o movimento de incluir o proletariado na política -ele faz o movimento de excluí-lo. Como é que pode? Pode no momento em que todas as medidas do governo são contra a centralidade do trabalho na política. O Bolsa-Família é algo que se pode entender a partir da irrelevância da política. Não adianta dizer que é assistencialista -isso é óbvio. De forma pedante, poderíamos dizer que o Bolsa-Família é uma criação foucaultiana. Um instrumento de controle, em primeiro lugar. Restaura uma espécie de clientelismo que não leva à política. Ela passa a ser determinada não por opções, mas pela "raça". Não é raça em termos raciais, é a "raça" da classe. É pelas suas carências que você é classificado perante o Estado. A política se constrói pelas carências. Então é abominável. Seria cínico dizer que é uma porcaria total, porque tem gente que come por causa do Bolsa-Família. Do outro lado, é isso. É a morte da política. Acabou a história de você depender das relações de força, das relações de classe para desenhar as políticas sociais. Elas são desenhadas agora por uma espécie de dispositivo foucaultiano. Quanto você tem de renda, qual é o seu estatuto de miserável, aí a política é desenhada. É uma clara regressão.
FOLHA - Não é mais desenhada a partir de direitos universais.
OLIVEIRA - De jeito nenhum. É um dispositivo. Da mesma forma que as cotas, que as ações afirmativas. É também um dispositivo. É o paradoxo. É uma antipolítica na forma de uma política. Porque a desigualdade é tão abissal no Brasil que é difícil você resistir que é preciso um estatuto especial para você tratar da questão racial. Vejo a questão das cotas no mesmo registro que o Bolsa-Família. É uma biopolítica. As relações sociais não suportam mais uma política que na verdade envolva escolhas, opções e política. Seu substituto é um dispositivo foucaultiano.
FOLHA - Qual a função do PT hoje? Ele foi um catalisador de demandas nas últimas décadas.
OLIVEIRA - O papel transformador do PT se esgotou. As razões são essas [da irrelevância da política]. O PT ficou dependente de Lula e não vai se libertar nunca mais. Talvez o PT tenha o destino do peronismo. Com essa política do Bolsa-Família, ele vai muito fundo, até as camadas mais pobres. E isso provavelmente fique como um legado para o PT pós-Lula. O que é extremamente perigoso, porque o partido peronista pós-Perón se tornou uma confederação de gangues. Eles se matam entre si. Eu não descarto esse cenário para o PT.
FOLHA - Grupos internos disputando um espólio?
OLIVEIRA - Que é o peronismo. É isso. Grupos que disputam um espólio, numa luta interna que é um fenômeno extraordinário. A diferença do peronismo em relação a outras experiências chamadas populistas é que ele foi fundo. A ponto de visitarmos o cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, e o túmulo de Evita ter flores novas todos os dias. Chegaram aos mais pobres dos pobres. Isso o PT faz por meio do Bolsa-Família. Mas a aura transformadora do PT se foi, como no próprio peronismo.
Michel Foucault criou o conceito de biopoder
O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) cunhou os conceitos de biopoder e de biopolítica, citados pelo sociólogo e economista Francisco de Oliveira em sua análise sobre o Bolsa-Família, programa de transferência de renda do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Segundo Foucault, para além de sanções e punições, os Estados exercem controle sobre as populações de maneira positiva, definindo modos de pensamento e de comportamento e normatizando grupos sociais distintos.
A partir desse tipo de disciplina e controle, defendia o filósofo francês, "somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer".
No ensaio "O Ornitorrinco", que escreveu em 2003, primeiro ano de mandato de Lula, Francisco de Oliveira relacionava o comportamento político do governo do petista, do próprio PT e do PSDB com o capitalismo financeirizado contemporâneo.
Nova classe social
Segundo o sociólogo, a elite do sindicalismo nacional, e por conseqüência o grupo dirigente do PT, passou a constituir uma nova classe social ao ocupar posições nos conselhos de administração das principais fontes de recursos para investimentos no país, entre elas o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e os fundos de pensão das empresas estatais, como a Petrobras.
Assim esses novos "gestores" descolariam-se da representação dos interesses específicos dos trabalhadores, que não seriam mais os seus.
fonte http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2407200614.htm
"A única coisa que o PSOL pode fazer [na política nacional] é ser uma espécie de Grilo Falante, uma espécie de consciência crítica", afirma Francisco de Oliveira. Não se trata de incapacidade específica da legenda, mas da constatação, ele diz, de que a política se tornou completamente irrelevante. Entre as causas deste fato, para ele incontornável, estão a financeirização da economia -que tira a autonomia de decisões dos governos nacionais- e a quebra das identidades de classe e sua representação em partidos políticos -também decorrente das transformações recentes do capitalismo. Na entrevista a seguir, Oliveira relaciona o Bolsa-Família e a política de cotas para negros a esse fim da política e diz que o PT pós-Lula pode ter o mesmo destino do peronismo argentino -com a criação de grupos gangsterizados que disputariam o espólio da penetração política e simbólica, a partir de programas sociais, entre os mais pobres. O sociólogo relaciona ainda o crescimento da facção criminosa PCC e os recentes ataques em São Paulo ao desenvolvimento do capitalismo no país, que, de acordo com ele, funciona em parte na ilegalidade e "não respeita nenhuma institucionalidade". A seguir, trechos da conversa, realizada em seu escritório, em São Paulo.
FOLHA - Como o sr. vê a subida de Heloísa Helena no Datafolha? Como o sr. vê suas chances eleitorais?
FRANCISCO DE OLIVEIRA - Ela pode crescer mais alguns pontos, mas não para passar dos 15%. Não acredito. O eleitorado que vai votar em Heloísa é fácil de se presumir. São ex-petistas, desiludidos com o PT, e, de outro lado, gente não necessariamente partidarizada decepcionada com o governo Lula ou que acha que o Alckmin não é nada. É nessa faixa que ela navega e vai crescer no máximo até 15%.
FOLHA - O sr. fazia a avaliação, já há algum tempo, de que havia um esgotamento da política, de sua capacidade de representar possibilidade de mudança. O sr. acha que a candidatura dela e o PSOL podem representar uma saída para isso?
OLIVEIRA - Seria desejável, mas eu não acredito. O fenômeno da irrelevância da política é muito profundo. A candidatura agora, ou outra do PSOL repetida no futuro, será uma espécie de desafogo, mas com muito poucas chances de ser majoritária e muito poucas chances de tornar-se hegemônica e sobretudo de pautar politicamente. Os partidos não têm noção das raízes dessa irrelevância da política. Nem o PSOL. Ele imagina que pode refazer um partido tal como o PT foi na sua origem.
FOLHA - Não há possíveis semelhanças entre Heloísa Helena e o Lula nos anos 80?
OLIVEIRA - Apesar de tudo, não há nenhuma semelhança entre os dois partidos. No sentido de bases e de poder pautar a política brasileira. O PT pautou. A única coisa que o PSOL pode fazer é ser uma espécie de Grilo Falante, uma espécie de consciência crítica, mas sem possibilidades de hegemonia, sem possibilidades sequer de pautar a política brasileira. Essa é uma conclusão muito dura, para mim mesmo e para os militantes em geral. É preciso pesquisar as razões da irrelevância da política hoje, e não só no Brasil. Aqui, isso tem um efeito devastador. Aqui, o fundo da irrelevância da política é a desigualdade. Não é mais plausível, para nenhum de nós, que você possa, por meio da política, atravessar o Rubicão. Não é mais possível. A formação do PT foi algo muito específico. É preciso não esquecer que ele se formou dentro da ditadura, com um movimento sindical em ascensão, numa espécie de eco de um Estado de Bem-Estar privatizado. Trabalhadores de certos ramos, sobretudo do metalúrgico, tinham planos de benefícios muito importantes. Era privatizado porque eram as empresas que davam. Esse movimento estava em ascensão -não como agora, que está em refluxo. E é importante não esquecer que aconteceu simultâneo a um movimento de democratização muito importante. Foi dentro desse movimento que o PT nasceu. Esse conjunto é irrepetível. As forças sindicais foram muito desgastadas. A queda de sindicalização é vertical. Os petroleiros foram arrasados pelo Fernando Henrique Cardoso. Além disso há um movimento de reestruturação produtiva, misturado à globalização, que devastou as fileiras do operariado. Não tem a conjuntura e a estrutura de forças que fizeram o PT. O movimento sindical, tal como o conhecemos, e tal como ele formou a pauta social e política dos anos 70, não existe mais. Aquele tipo de movimento sindical não existe mais e não existirá. O PSOL está, portanto, em busca de uma miragem.
FOLHA - Há alguma relação entre isso que o sr. descreve e o governo Lula?
OLIVEIRA - Tomem a última declaração de bens de Lula. A metade de seu patrimônio está em aplicações financeiras. O paradoxo é que ele está à testa de um governo que endivida o país, e essa dívida é parte do seu patrimônio. É a cobra mordendo o próprio rabo. É apenas emblemático. Onde ele aplica? Como não é um especulador da bolsa, provavelmente em títulos da dívida pública. Não é só o Lula. Quem tiver um pouco de dinheiro vai fazer a mesma coisa. Ele aumenta o patrimônio graças ao endividamento do governo que preside. Sua posição política é completamente irrelevante. Faça o que fizer, está amarrado nessa financeirização do Estado. Isso não começou com ele, evidentemente. Seu governo até faz um esforço de reduzir a relação da dívida com o PIB. Com o Fernando Henrique, isso foi de 1 para 10. Isso financeirizou a economia e amarrou-a às determinações de fora. Este é o fator principal da irrelevância da política. Todas as relações sociais estão mediadas agora pela relação externa. A política interna perdeu a capacidade de dirigir a sociedade. Qualquer que seja a relação, ela tem que passar pelas relações externas. Isso quebra na espinha a política. Política é escolha. Política é opção. Mais ou menos, todos agora têm que seguir a mesma regra.
FOLHA - O sr. não reconhece nenhum mérito na política social do governo Lula, no Bolsa-Família? O sr. chegou a dizer que Lula exclui os trabalhadores da política, quando perguntado sobre o programa e as possíveis relações entre Lula e Getúlio Vargas.
OLIVEIRA - As analogias entre Lula e Getúlio estão sendo propagandeadas aos quatro ventos. Até ele, quando líder sindical contrário a todas as criações sindicais da era varguista, até Lula agora quer se identificar com o Getúlio. Reafirmo: são antípodas. Lula não tem nada que ver com Getúlio. É o oposto. Lula não é populista, porque ele não faz o movimento de incluir o proletariado na política -ele faz o movimento de excluí-lo. Como é que pode? Pode no momento em que todas as medidas do governo são contra a centralidade do trabalho na política. O Bolsa-Família é algo que se pode entender a partir da irrelevância da política. Não adianta dizer que é assistencialista -isso é óbvio. De forma pedante, poderíamos dizer que o Bolsa-Família é uma criação foucaultiana. Um instrumento de controle, em primeiro lugar. Restaura uma espécie de clientelismo que não leva à política. Ela passa a ser determinada não por opções, mas pela "raça". Não é raça em termos raciais, é a "raça" da classe. É pelas suas carências que você é classificado perante o Estado. A política se constrói pelas carências. Então é abominável. Seria cínico dizer que é uma porcaria total, porque tem gente que come por causa do Bolsa-Família. Do outro lado, é isso. É a morte da política. Acabou a história de você depender das relações de força, das relações de classe para desenhar as políticas sociais. Elas são desenhadas agora por uma espécie de dispositivo foucaultiano. Quanto você tem de renda, qual é o seu estatuto de miserável, aí a política é desenhada. É uma clara regressão.
FOLHA - Não é mais desenhada a partir de direitos universais.
OLIVEIRA - De jeito nenhum. É um dispositivo. Da mesma forma que as cotas, que as ações afirmativas. É também um dispositivo. É o paradoxo. É uma antipolítica na forma de uma política. Porque a desigualdade é tão abissal no Brasil que é difícil você resistir que é preciso um estatuto especial para você tratar da questão racial. Vejo a questão das cotas no mesmo registro que o Bolsa-Família. É uma biopolítica. As relações sociais não suportam mais uma política que na verdade envolva escolhas, opções e política. Seu substituto é um dispositivo foucaultiano.
FOLHA - Qual a função do PT hoje? Ele foi um catalisador de demandas nas últimas décadas.
OLIVEIRA - O papel transformador do PT se esgotou. As razões são essas [da irrelevância da política]. O PT ficou dependente de Lula e não vai se libertar nunca mais. Talvez o PT tenha o destino do peronismo. Com essa política do Bolsa-Família, ele vai muito fundo, até as camadas mais pobres. E isso provavelmente fique como um legado para o PT pós-Lula. O que é extremamente perigoso, porque o partido peronista pós-Perón se tornou uma confederação de gangues. Eles se matam entre si. Eu não descarto esse cenário para o PT.
FOLHA - Grupos internos disputando um espólio?
OLIVEIRA - Que é o peronismo. É isso. Grupos que disputam um espólio, numa luta interna que é um fenômeno extraordinário. A diferença do peronismo em relação a outras experiências chamadas populistas é que ele foi fundo. A ponto de visitarmos o cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, e o túmulo de Evita ter flores novas todos os dias. Chegaram aos mais pobres dos pobres. Isso o PT faz por meio do Bolsa-Família. Mas a aura transformadora do PT se foi, como no próprio peronismo.
FOLHA - Como isso que o sr. chama de esgotamento da política se liga com o dia-a-dia brasileiro, com a violência urbana, por exemplo?
OLIVEIRA - É algo muito sério. É o rabo do rnitorrinco, que surgiu agora. Um sinal de que o capitalismo periférico não respeita nenhuma institucionalidade. Ele está se lixando para elas. A institucionalidade criada nos últimos dois séculos não agüenta o capitalismo periférico. Ela é incapaz de regular os conflitos postos pela marcha forçada do capitalismo periférico. Por todos os lados que você olhe, é tudo furado. Não tem uma regra que possa ser obedecida durante três meses. Nenhuma. Em qualquer atividade econômica. Tudo ultrapassa a regra institucional.
Por causa de sua velocidade. O pesado imposto que ele impõe para você acompanhar a marcha. O Brasil não tem condição de acompanhá-la. Eu fico espantado. A velocidade dessa espécie de remodelação permanente é espantável.
Isso desbarata qualquer regra. E aí vem o pior, que são os vasos comunicantes. A fronteira entre o legal e o ilegal acabou. Não existe. Estabeleceu-se um sistema de vasos comunicantes, e o PCC está no meio disso tudo. Deve estar no meio de altos negócios. Trata-se de uma questão de negócios.
OLIVEIRA - É algo muito sério. É o rabo do rnitorrinco, que surgiu agora. Um sinal de que o capitalismo periférico não respeita nenhuma institucionalidade. Ele está se lixando para elas. A institucionalidade criada nos últimos dois séculos não agüenta o capitalismo periférico. Ela é incapaz de regular os conflitos postos pela marcha forçada do capitalismo periférico. Por todos os lados que você olhe, é tudo furado. Não tem uma regra que possa ser obedecida durante três meses. Nenhuma. Em qualquer atividade econômica. Tudo ultrapassa a regra institucional.
Por causa de sua velocidade. O pesado imposto que ele impõe para você acompanhar a marcha. O Brasil não tem condição de acompanhá-la. Eu fico espantado. A velocidade dessa espécie de remodelação permanente é espantável.
Isso desbarata qualquer regra. E aí vem o pior, que são os vasos comunicantes. A fronteira entre o legal e o ilegal acabou. Não existe. Estabeleceu-se um sistema de vasos comunicantes, e o PCC está no meio disso tudo. Deve estar no meio de altos negócios. Trata-se de uma questão de negócios.
Michel Foucault criou o conceito de biopoder
O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) cunhou os conceitos de biopoder e de biopolítica, citados pelo sociólogo e economista Francisco de Oliveira em sua análise sobre o Bolsa-Família, programa de transferência de renda do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Segundo Foucault, para além de sanções e punições, os Estados exercem controle sobre as populações de maneira positiva, definindo modos de pensamento e de comportamento e normatizando grupos sociais distintos.
A partir desse tipo de disciplina e controle, defendia o filósofo francês, "somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer".
No ensaio "O Ornitorrinco", que escreveu em 2003, primeiro ano de mandato de Lula, Francisco de Oliveira relacionava o comportamento político do governo do petista, do próprio PT e do PSDB com o capitalismo financeirizado contemporâneo.
Nova classe social
Segundo o sociólogo, a elite do sindicalismo nacional, e por conseqüência o grupo dirigente do PT, passou a constituir uma nova classe social ao ocupar posições nos conselhos de administração das principais fontes de recursos para investimentos no país, entre elas o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e os fundos de pensão das empresas estatais, como a Petrobras.
Assim esses novos "gestores" descolariam-se da representação dos interesses específicos dos trabalhadores, que não seriam mais os seus.
fonte http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2407200614.htm
Assinar:
Postagens (Atom)