Em 14 de agosto de 2009, o site do Instituto Humanitas Unisinos publicou a entrevista abaixo. Nela Marcuse e Neil Brenner, professor de sociologia e de estudos metropolitanos da New York University, discutiam a crise econômica mundial e seus efeitos na geografia das cidades, das nações e do mundo.
De que modo a crise pode ser uma oportunidade para a esquerda e os movimentos sociais?
Peter Marcuse - O ponto de partida para se entender quais são os limites e as possibilidades para a esquerda nessa crise econômica é a situação atual do mercado imobiliário, particularmente o das cidades. Nos EUA, existe a grande solidariedade para com aqueles que perdem a casa própria, e se multiplicam as tentativas para evitar as desapropriações. Entre os mais radicais, há um movimento de ocupação das casas confiscadas, ativo em várias regiões: em Nova Iorque, assume o nome de Picture the Homeless; em Miami, chama-se Take Back the Land. Os ativistas ajudam as pessoas a ocupar as casas que ficaram vazias, conquistando assim muita simpatia por parte da população. Quando questionados sobre quais são os seus objetivos, respondem muitas vezes que estão conscientes de que as suas ações são ilegais e que as famílias de ocupantes deverão, cedo ou tarde, ir embora. O que buscam fazer é só tornar públicas as tragédias de quem foi jogado para fora de sua própria casa. O passo seguinte, logicamente, deve ser o reconhecimento de que o livre mercado é o instrumento errado para distribuir as casas e que os edifícios ocupados devem ser colocados de modo permanente ao serviço de quem tem necessidade deles. Porém, esse raciocínio não é feito. A recente formação e crescimento de movimentos sociais radicais é indubitável. Ao mesmo tempo, não conseguem explicitar o caráter político das suas reivindicações.
Neil Brenner - Se as pessoas entendessem que essa é a lógica inevitável do capitalismo, chegaríamos a uma crítica sistemática e a uma solução. Não se trata de corrigir alguns "casos isolados" de expulsão de pessoas que se encontraram em "circunstâncias infelizes". A situação atual é o resultado de mais de uma década de especulação de um mercado imobiliário orientado a tirar lucro das faixas mais frágeis da população.
Quais são, então, os efeitos da crise econômica nas metrópoles norte-americanas?
Peter Marcuse - Até o momento, há mudanças significativas no modo em que o capitalismo intervém nas cidades. Mas as hierarquias do poder podem se modificar, mesmo que ainda não esteja claro em qual direção. É grande a possibilidade de que ocorra algo na frente política, o que influenciaria o governo das cidades. Com a eleição de Obama, houve um deslocamento geral para a esquerda, mesmo que certamente não de um modo radical. Se difundiu, assim, a necessidade de um papel mais forte das instituições públicas e de uma maior regulação da economia de mercado. Além disso, não há mais uma aceitação acrítica do papel central das finanças no setor do desenvolvimento urbanístico. Ao mesmo tempo, o uso que está sendo feito das ajudas de Estado indicam a importância contínua, senão crescente, do setor financeiro.
Neil Brenner - A pergunta que a esquerda deve se colocar não é "crise ou estabilidade", mas o que diferencia esta crise das outras. Esta, de fato, é uma ocasião para “politicizar” a financeirização da economia em geral e da economia urbana em particular. O papel dos negócios como mecanismo central do capitalismo foi dado por óbvio, enquanto subentende decisões e relações de força que decidem a distribuição dos recursos públicos. É com isso que hoje devemos nos confrontar de modo muito explícito e em todos os níveis: local, nacional e global.
Peter Marcuse - A palavra chave é "politicizar". Isso ainda não ocorreu. A desconfiança no setor financeiro não está muito longe de se tornar uma crítica do capitalismo, mas essa possibilidade continua nas margens da discussão pública, o que coloca em evidência os limites no funcionamento da democracia representativa. Sugere-se que a unidimensionalidade produzida pelo sistema é muito profunda. Porém, quando Obama fala nos campi universitários, as questões levantadas se referem à necessidade de prevenir os abortos em vez de limitar o poder de Wall Street.
Pode-se falar, portanto, de uma distância, senão de uma ruptura, entre o nível da representação democrática e o dos fenômenos sociais que se manifestam nas metrópoles?
Neil Brenner - Uma das respostas poderia ser esta: as instituições representativas garantem um certo nível de direitos civis propedêuticos à busca de outras formas de democracia radical. Porém, a questão é outra, isto é, se os movimentos globais operam para afirmar um projeto de democracia popular ou de autogestão mais radical do que os procedimentos eleitorais, sobre os quais se baseia a democracia parlamentar. Devemos nos perguntar se os processos de reestruturação econômica global nas últimas duas décadas, além de limitar os movimentos sociais, contribuíram para o surgimento de novas estratégias nessa direção nas cidades de todo o mundo.
Peter Marcuse - Eu vejo uma situação de grande ambiguidade. O lugar em que a democracia direta é possível são as cidades, o nível local, porque é ali que vivem os homens e as mulheres. O descontentamento com relação a essa crise expressa-se nas cidades e, em certa medida, nas políticas urbanas. Mas o fenômeno não é local, mas nacional e global. Por isso, temos respostas ambíguas: a indignação se expressa em nível local, mas o seu objetivo é supralocal. Uma consequência negativa da crise nas políticas locais é a subordinação dos problemas relativos à qualidade de vida ou aos salários e à distribuição dos recursos às medidas pelo crescimento econômico. É isso que está ocorrendo em Nova Iorque, onde a administração está investindo em infraestruturas na lower Manhattan para obter maior desenvolvimento econômico, em vez de investir nas escolas públicas, na saúde. Nessa situação de crise, a longa duração do domínio da esfera econômica terá efeitos negativos sobre os movimentos sociais progressistas em nível local.
A globalização, em todas as suas formas, coloca em jogo a relação entre o capital e a transformação espacial do mundo. Que relação existe hoje entre o desenvolvimento capitalista e a criação de novos espaços?
Neil Brenner - A transformação espacial está no centro da acumulação de capital, porque a extração da mais-valia implica a criação de uma rede global de infraestruturas para facilitar a acumulação. Essa questão está no coração do nosso projeto "Cidades para as pessoas, não para o lucro". De um lado, há processos de acumulação e de mercantilização que produzem vários modos de apropriação do espaço orientado ao lucro. De outro, há lutas para se apropriar do espaço pelo uso popular, pela reprodução social. Mas o limite entre mercantilização e reprodução social é flutuante. A crise evidenciou a extensão crescente da mercantilização do mercado imobiliário e a oposição que ele encontrou. Este é um conflito sobre a produção do espaço. Assume formas diferentes com relação a 30, 50 ou 150 anos atrás, mas é endêmico ao capitalismo como o conflito para extrair mais-valia do trabalho.
Peter Marcuse - A crise foi produzida pela busca de lugares posteriores para o investimento de capital: os salários não eram suficientes para que o setor imobiliário produzisse frutos em termos de investimentos, por isso decidiu-se estender o crédito para produzir lucro. Quando os salários não são suficientemente altos para pagar novamente o crédito, tem-se uma crise como esta.
Nos EUA, a teoria crítica não se manifesta mais nos âmbitos do pensamento político ou da ciência política, mas nos estudos de geografia e de urbanística crítica. Por quê? Isso tem a ver com os processos de globalização e desnacionalização?
Neil Brenner - A partir dos anos 80, assistimos a uma significativa rearticulação do espaço político-econômico. Alguns estudiosos falaram disso em termos de globalização, desterritorialização ou desnacionalização. Eu prefiro falar de "rescaling", de redefinição das escalas espaciais. Um dos desafios hoje é dar sentido a essas novas geografias. Penso que o termo "desnacionalização" é problemático. A dimensão nacional é significativa em termos estruturais e políticos, assim como era no passado, mas está inserida em um contexto geográfico que mudou. Portanto, é necessário compreender a rearticulação do nível nacional com o nível local e o mundial da autoridade política. A União Europeia é um caso de estudo muito importante para se compreender essa nova configuração do espaço político e da autoridade política a partir do novo sistema de relações entre nacionais, subnacionais e supranacionais. Trata-se de um redimensionamento do espaço político nacional mais do que a sua dissolução.
Peter Marcuse - A geografia tem uma relação mediata com o político. Se tivermos que analisar o que está acontecendo nos EUA com a crise utilizando os instrumentos de uma boa ciência política, a conclusão seria imediatamente que uma revolução é útil. Se levarmos em consideração o sistema espacial, é preciso fazer algumas inferências posteriores antes de chegar à mesma conclusão, porque, introduzindo o nível espacial, produz-se uma formulação mediata da crise. Estou surpreso pelo fato de que a geografia é hoje mais radical do que a ciência política ou a economia, porque, em certo sentido, é ilógico. A crise subjacente se refere às relações econômicas e políticas na sociedade, e o espaço é um instrumento para influenciá-las e estruturá-las, mas é um reflexo disso.
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Um livro virtual que quer sair da tela
"Cities for People, not for Profit" é um projeto nascido por ocasião de um seminário ocorrido em Berlim por razão dos 80 anos de Peter Marcuse. Os materiais ali apresentados compõem um livro ainda virtual, mas sobre o qual já se falou tanto dentro quanto fora da tela. O jornal londrino The City falou a respeito, enquanto no sítio www.informaworld.com pode-se ler e baixar contribuições posteriores e reflexões sobre a tese que reúne os diversos ensaios iniciais. Para os autores, seguindo os estudos de David Harvey sobre o papel do espaço no atual regime flexível de acumulação capitalista, as metrópoles têm uma relevância estratégica para garantir o fluxo dos capitais, das mercadorias, da força de trabalho e para definir o laço entre dimensão local, nacional e supranacional na globalização econômica.
Estudiosos do tecido urbano
Peter Marcuse nasceu em Berlim em 1928. Vive nos EUA desde 1933, quando pai Herbert, para fugir do regime nazista, se transferiu para Nova Iorque. Professor e estudioso de urbanística, escreveu de modo extenso sobre a construção do mercado imobiliário e sobre o impacto das crises econômicas no tecido urbano. Particularmente devem ser destacados "Globalizing Cities: A New Spatial Order?" e "Of States and Cities: the Partitioning of Urban Space". Sobre a queda do Muro de Berlim e o processo de unificação alemã, ele publicou "Missing Marx: A Personal and Political Journal on a Year in East Germany, 1989-1990". Por ocasião do seu 80º aniversário, foi realizada uma conferência em Berlim em novembro sobre o tema do direito à cidade e sobre as perspectivas da teoria crítica aplicada à urbanística. Assim nasceu o livro "Cities for People, not for Profit", junto com Neil Brenner. Este último, sociólogo político urbano, trabalhou na redescoberta, nos EUA, do trabalho do geógrafo radical francês Henri Lefebvre. Organizou, junto com Stuart Elden, a tradução de alguns escritos do geógrafo francês recolhidos no livro "State, Space, World: Selected Essays". Entre os trabalhos recentes de Brenner estão "Global Cities Reader", "New State Spaces: Urban Governance and the Rescaling of Statehood" e "Spaces of Neoliberalism: Urban Restructuring in Western Europe and North America"
sexta-feira, 19 de março de 2010
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