Corpoiesis: um ator, uma escrita
Eis que me deparo com meu nome vinculado à um PDF de um doutorado em linguística. Uma entrevista concedida por mim e Simone Spoladore nos idos de 2004 ou 2005 à Newton Freire Murce Filho. Segue trecho da entrevista precedida do texto/contexto da tese em que é citada.
" Conforme Knobloch (op.cit., p.139), um novo campo se constitui quando se pode pensar certos processos subjetivos como não restritos ao campo do recalque, ao campo do inconsciente, mas, sim, ao que se denominou campo de clivagem, no qual nos encontramos diante de circuitos não organizados pelas representações. Na crise, portanto, o sujeito não se encontra organizado, estamos num campo de indeterminação em que se perdem as certezas. A autora (Knobloch op.cit., pp.141-3) se pergunta se não seria nesse tempo, da perda de consistência, lugar de novas marcas. Na crise, o caos se instala e é chamado de uma “desordem”. Experiência em que há algo de insuportável, no sentido literal de não haver suporte, experiência que nos habita, como um abismo de perda de sentido, em que se perdem as ligações. A crise é talvez loucura, no sentido de algo que irrompe na organização do sujeito e o faz sentir-se totalmente estranho, fora de si, esquisito. É o efeito dos desligamentos, das dissoluções do formalizado que se faz sentir: fragilidade, vulnerabilidade, oscilação, desassossego, agitação, flutuação, mutabilidade. Este parágrafo é interessante para nos levar a alguns depoimentos de atores e ao que chamamos de escrita do corpo, isto é, escrita daquilo que age no corpo, que é irrepresentável, mas que opera, produz efeitos, e que vai ser organizado, escrito, com o
Simbólico e o Imaginário.
Numa entrevista feita com os atores Simone Spoladore e Lori Santos, há um trecho em que a atriz conta uma cena com a qual teve dificuldade e que diz respeito ao estado de oscilação e de vulnerabilidade por que passa o ator. É interessante notar que a cena só é “resolvida” depois do instante em que ela admite e diz “não sei”. Vejamos o diálogo abaixo:
(S – Simone Spoladore, L – Lori Santos, N – Newton Murce):
S – /.../ tinha uma cena difícil pra fazer, era uma cena de gritaria e o diretor tinha dado uma marca pra mim que era muito racional pra cena, sabe, então [faz gestos
demonstrativos enquanto fala] “você pega esse copinho, e joga assim e pega isso aqui
e faz assim”, e eu comecei a fazer o que ele tinha mandado, e aí a cena não ia, não ia, não ia e não ia, e uma vez, duas vezes, chegou uma hora que eu parei /.../ e falei “não sei fazer, não sei”, e ficou todo mundo olhando pra mim com aquela cara e [risos], e aí, mas aí, partindo desse ponto, do “não sei”, aí eu comecei a conseguir de novo [risos].
L – Nada como morrer, nada como morrer /.../ porque a gente tem que procurar essa
morte mesmo, /.../ você tem que estar disposto /.../, porque se não, não é franco,
ninguém pode entrar em cena franco se não tiver essa hipótese em conta, entendeu, a
de fracassar, [Simone completa: “errar”, e Lori continua] errar e morrer, entende,
/.../, se não é desumano, é muito desempenho daí, é muito performance, assim
performance no mau sentido, não no grande sentido da performance, é muito de querer /.../ virtuosismo /.../
N [dirigindo-se a Simone] - E o que que você acha que aconteceu depois que você
disse “eu não sei”?
S – /.../ você assumir sua fragilidade mesmo, é isso, assumir a fragilidade, assumir a
imperfeição, e aí trabalhar em cima disso, você não tem que saber tudo o tempo todo,
você não sabe tudo o tempo todo, nem na vida. Quando você assume isso, eu acho, fica
muito mais [pausa, procurando a palavra] mais fácil [risos].
L – Eu acho que humaniza (Simone Spoladore e Lori Santos)."
Para ler o texto integral da tese link "Corpoiesis: um ator, uma escrita"
quinta-feira, 6 de outubro de 2011
segunda-feira, 20 de junho de 2011
Lourinelson Vladmir - atavismo poético
Lourinelson disse : a poesia está ligada ao humano por um laço de tipo atávico - eu diria um atavismo cultural: está no início da linguagem
O projeto trata disto. De mostrar de algum modo que há sim um abismo entre poesia e educação formal mas que é fácil, apesar do buraco, mudar isto e recolocar a enunciação de textos como uma atividade prazerosa humana, comum, cotidiana, e então – aqui o papo começa a esquentar – política (porque o fato de se ter-se perdido a hábito de entoar discursos, de discursar, é um fato funesto para a cidade, para pólis, para a política)
Julio disse: estudo o abismo da linguagem no meu mestrado
e realmente, faz mto sentido isso q vc faz
Lourinelson disse: a tese é que por conta deste atavismo-cultural basta mexer no ponto certo e o humano-animal passa a entoar discursos veementes
Lourinelson disse: fale 5 linhas sobre abismo da linguagem
Julio disse: é impossível reproduzir a realidade - o que a gente sente, o que processamos, nossa sintonia com o divino, etc, é indizível. Quando tentamos comunicar para alguem o que sentimos, escolhemos uma palavra, mas as palavras não sao suficientes para abranger o real. são incompletas. a poesia, arte, etc, são maneiras de se aproximar desse indizível, mas há um abismo entre o Real e a língua.
* * *
Segue texto – improviso - sobre a veemência como atavismo-cultural que está na origem da récita, e no gosto facilmente estimulável de recitar – de dizer com fluência (um modo estético de veemência). Em suma a aposta é: a poesia está no gene. Já está introjetada no homem como uma estrutura elementar da linguagem. A um só tempo elementar e a mais sofisticada.
grande abraço
louri
Sobre as relações entre justiça, veemência, linguagem, grunhidos, melopeia e discurso – primatas, poetas, narradores-atores e advogados-magistrados.
Tomar um papel – o advogado quando atua toma para si um discurso, cujo fundamento é uma idéia de justiça. Quando tomado por essa ideia – que é o contra fluxo estético da ação intelectual (estética-ética) de assumir uma causa – enfim, quando se estabelece nele uma idéia de justiça de sua causa, o humano (humano-animal) se insufla de uma voz grandiloquente, corrente, flutissonante que é o discurso. O magistrado opera seu discurso de modo semelhante apenas que sua causa é mais genérica, a justiça em si.
A personagem - O Discurso de qualquer personagem - de um poema dramático, ou de um drama -, funda-se sempre também numa idéia de justiça. Toda a diferença entre o ator e o advogado-magistrado está no ator emprestar o seu corpo ao discurso, colá-lo a ele. O Advogado toma o discurso e advoga; do mesmo modo descolado pelo qual o Narrador narra. Mas o narrador quando imita o personagem e lhe empresta seu corpo – do calcanhar ao tom da voz, dá um passo adiante na brincadeira, no jogo, e então está Ator (narrador-ator): que além de tomar o discurso o atualiza - atua
O Narrador narra, conta a injustiça.
O Ator atualiza, mostra a injustiça
E o Advogado atua também, por que seu discurso sobre a dor se processa no tempo real do “fazer justiça” (que implica narrar a dor, mostrar a injustiça e pedir que seja reparada, pedir justiça, e neste sentido atualizá-la também, torná-la, fazê-la presente).
É justamente quando mostra a injustiça e clama por justiça que o advogado atua no próprio corpo um discurso.
O advogado trabalha a mesma matéria do ator: a enunciação de um discurso; não imita, é verdade, mas do mesmo modo que o ator atualiza no corpo uma idéia de justiça. Sem essa idéia forte, articulada com o aparato técnico-jurídico que dominar, o advogado não é capaz de ser convincente, do mesmo modo que o ator não o é quando desprovido da ideia de justiça de seu personagem.
(Não é atoa que o sujeito meticuloso como o Antunes filho quanto ao estar do ator em cena, confere tanta importância e tempo de curso no seu CPT no trato da Retórica).
(Tudo que se disse do advogado se aplica com ao magistrado, com peculiaridades.)
*
Quanto ao recitar poemas:
A veemência é o elemento do discurso cuja idéia de justiça é forte. Mesmo o homem das cavernas podia ser bem veemente a propósito e uma dor qualquer: injusta – a dor é a mãe da sensação de injustiça. A idéia de justiça é sempre a reação a sensação de injustiça. Uma dor que lhe impingem e que não cabe a você sentir como pessoa ou grupo. Uma dor que você ou o seu grupo sentem mas um outro ou outro grupo não. Uma desigualdade, portanto. Para que todos sintam a mesma dor, ou nenhuma, há duas modos: o bárbaro - você à impinge aos outros, ou o civilizado, você a narra aos outros, argumenta a desmedida e pede justiça, em uma palavra faz um discurso. A forma de fazer este discurso também viria. Os grunhidos para os demais primatas do seu grupo sobre como roubaram o fogo enquanto todos estavam fora deve ser veemente para comunicar o trágico acontecimento. É provável que você primata use gestos e empreste seu corpo inteiro para tal, de modo que fique bem claro como foi que o outro grupo chegou, enquanto vocês foram caçar, e eu junto com as mulheres cuidava do fogo, o grupo chegou, muitos no grupo. Barulho, dentes, apontaram para o fogo, me empurraram; disse que era meu; que era nosso. Me empurraram. Levaram o fogo, estupraram mulheres, levaram mulheres. Mataram crianças.
Um discurso sobre uma dor. Veemente como linguagem, mesmo que grunhida.
Então dizer poemas está ligado à humanidade desde seus primórdios. O poema apenas é a forma mais excelente de se dispor palavras em sons e pausas – o poema é o antípoda high tech do primeiros grunhidos. Alta tecnologia comunicacional – hi-homero.
Dizer poemas re-toca neste lugar antiquíssimo, passagem entre o animal e a humanidade: ser veemente emitindo sons (proto-palavras) está na origem dá récita porque o lugar é o mesmo: fazer um discurso veemente sobre um dor.
Assim h
A poesia, cuja matéria sensível/sensibilizante é a melopeia, tem o mesmo fundamento dos grunhidos do humanoide que por uma proto-melopéia, comunicava - narrava e atuava - o roubo do fogo, o estupro das mulheres, a morte dos velhos, a guerra.
Vão grifados, os versos de Camões em Os Lusiadas:
Dai-meu uma fúria grande e sonorosa
e não de agreste avena ou frauta ruda
mas de tuba sonora e belicosa
que o peito acende e a cor ao gesto muda.
Questão: E o cantor? o cantor estaria, quanto à relação com o texto/discurso, num modo intermediário entre o advogado e o ator? É curiosa a palavra:'defende' a canção. Aqui 'atua' como o advogado que defende a causa. Por outra o cantor empresta seu corpo num grau mais elevado que o advogado, por permissivo de outros engendramentos corporais (como a dança), obviamente estranhos à tribuna.
O cantor num outro ramo do rizoma - cultura de enunciação da palavra, cujo marco fundador talvez a primeira manifestação grunhida (proto-melopeica) de uma dor, e de um pedido de justiça.
A expressão humana em si, nestas hipoteses, estaria essencialmente fundada no dor/glória injustiça/justiça.
O projeto trata disto. De mostrar de algum modo que há sim um abismo entre poesia e educação formal mas que é fácil, apesar do buraco, mudar isto e recolocar a enunciação de textos como uma atividade prazerosa humana, comum, cotidiana, e então – aqui o papo começa a esquentar – política (porque o fato de se ter-se perdido a hábito de entoar discursos, de discursar, é um fato funesto para a cidade, para pólis, para a política)
Julio disse: estudo o abismo da linguagem no meu mestrado
e realmente, faz mto sentido isso q vc faz
Lourinelson disse: a tese é que por conta deste atavismo-cultural basta mexer no ponto certo e o humano-animal passa a entoar discursos veementes
Lourinelson disse: fale 5 linhas sobre abismo da linguagem
Julio disse: é impossível reproduzir a realidade - o que a gente sente, o que processamos, nossa sintonia com o divino, etc, é indizível. Quando tentamos comunicar para alguem o que sentimos, escolhemos uma palavra, mas as palavras não sao suficientes para abranger o real. são incompletas. a poesia, arte, etc, são maneiras de se aproximar desse indizível, mas há um abismo entre o Real e a língua.
* * *
Segue texto – improviso - sobre a veemência como atavismo-cultural que está na origem da récita, e no gosto facilmente estimulável de recitar – de dizer com fluência (um modo estético de veemência). Em suma a aposta é: a poesia está no gene. Já está introjetada no homem como uma estrutura elementar da linguagem. A um só tempo elementar e a mais sofisticada.
grande abraço
louri
Sobre as relações entre justiça, veemência, linguagem, grunhidos, melopeia e discurso – primatas, poetas, narradores-atores e advogados-magistrados.
Tomar um papel – o advogado quando atua toma para si um discurso, cujo fundamento é uma idéia de justiça. Quando tomado por essa ideia – que é o contra fluxo estético da ação intelectual (estética-ética) de assumir uma causa – enfim, quando se estabelece nele uma idéia de justiça de sua causa, o humano (humano-animal) se insufla de uma voz grandiloquente, corrente, flutissonante que é o discurso. O magistrado opera seu discurso de modo semelhante apenas que sua causa é mais genérica, a justiça em si.
A personagem - O Discurso de qualquer personagem - de um poema dramático, ou de um drama -, funda-se sempre também numa idéia de justiça. Toda a diferença entre o ator e o advogado-magistrado está no ator emprestar o seu corpo ao discurso, colá-lo a ele. O Advogado toma o discurso e advoga; do mesmo modo descolado pelo qual o Narrador narra. Mas o narrador quando imita o personagem e lhe empresta seu corpo – do calcanhar ao tom da voz, dá um passo adiante na brincadeira, no jogo, e então está Ator (narrador-ator): que além de tomar o discurso o atualiza - atua
O Narrador narra, conta a injustiça.
O Ator atualiza, mostra a injustiça
E o Advogado atua também, por que seu discurso sobre a dor se processa no tempo real do “fazer justiça” (que implica narrar a dor, mostrar a injustiça e pedir que seja reparada, pedir justiça, e neste sentido atualizá-la também, torná-la, fazê-la presente).
É justamente quando mostra a injustiça e clama por justiça que o advogado atua no próprio corpo um discurso.
O advogado trabalha a mesma matéria do ator: a enunciação de um discurso; não imita, é verdade, mas do mesmo modo que o ator atualiza no corpo uma idéia de justiça. Sem essa idéia forte, articulada com o aparato técnico-jurídico que dominar, o advogado não é capaz de ser convincente, do mesmo modo que o ator não o é quando desprovido da ideia de justiça de seu personagem.
(Não é atoa que o sujeito meticuloso como o Antunes filho quanto ao estar do ator em cena, confere tanta importância e tempo de curso no seu CPT no trato da Retórica).
(Tudo que se disse do advogado se aplica com ao magistrado, com peculiaridades.)
*
Quanto ao recitar poemas:
A veemência é o elemento do discurso cuja idéia de justiça é forte. Mesmo o homem das cavernas podia ser bem veemente a propósito e uma dor qualquer: injusta – a dor é a mãe da sensação de injustiça. A idéia de justiça é sempre a reação a sensação de injustiça. Uma dor que lhe impingem e que não cabe a você sentir como pessoa ou grupo. Uma dor que você ou o seu grupo sentem mas um outro ou outro grupo não. Uma desigualdade, portanto. Para que todos sintam a mesma dor, ou nenhuma, há duas modos: o bárbaro - você à impinge aos outros, ou o civilizado, você a narra aos outros, argumenta a desmedida e pede justiça, em uma palavra faz um discurso. A forma de fazer este discurso também viria. Os grunhidos para os demais primatas do seu grupo sobre como roubaram o fogo enquanto todos estavam fora deve ser veemente para comunicar o trágico acontecimento. É provável que você primata use gestos e empreste seu corpo inteiro para tal, de modo que fique bem claro como foi que o outro grupo chegou, enquanto vocês foram caçar, e eu junto com as mulheres cuidava do fogo, o grupo chegou, muitos no grupo. Barulho, dentes, apontaram para o fogo, me empurraram; disse que era meu; que era nosso. Me empurraram. Levaram o fogo, estupraram mulheres, levaram mulheres. Mataram crianças.
Um discurso sobre uma dor. Veemente como linguagem, mesmo que grunhida.
Então dizer poemas está ligado à humanidade desde seus primórdios. O poema apenas é a forma mais excelente de se dispor palavras em sons e pausas – o poema é o antípoda high tech do primeiros grunhidos. Alta tecnologia comunicacional – hi-homero.
Dizer poemas re-toca neste lugar antiquíssimo, passagem entre o animal e a humanidade: ser veemente emitindo sons (proto-palavras) está na origem dá récita porque o lugar é o mesmo: fazer um discurso veemente sobre um dor.
Assim h
A poesia, cuja matéria sensível/sensibilizante é a melopeia, tem o mesmo fundamento dos grunhidos do humanoide que por uma proto-melopéia, comunicava - narrava e atuava - o roubo do fogo, o estupro das mulheres, a morte dos velhos, a guerra.
Vão grifados, os versos de Camões em Os Lusiadas:
Dai-meu uma fúria grande e sonorosa
e não de agreste avena ou frauta ruda
mas de tuba sonora e belicosa
que o peito acende e a cor ao gesto muda.
Questão: E o cantor? o cantor estaria, quanto à relação com o texto/discurso, num modo intermediário entre o advogado e o ator? É curiosa a palavra:'defende' a canção. Aqui 'atua' como o advogado que defende a causa. Por outra o cantor empresta seu corpo num grau mais elevado que o advogado, por permissivo de outros engendramentos corporais (como a dança), obviamente estranhos à tribuna.
O cantor num outro ramo do rizoma - cultura de enunciação da palavra, cujo marco fundador talvez a primeira manifestação grunhida (proto-melopeica) de uma dor, e de um pedido de justiça.
A expressão humana em si, nestas hipoteses, estaria essencialmente fundada no dor/glória injustiça/justiça.
sábado, 28 de maio de 2011
Lourinelson Vladmir
Reflexões sobre o projeto itinerários da digitalização do eu
"Não, eu não pretendo morrer sem luta e sem glória (akleios) como também sem algum feito cuja narrativa chegue aos homens por vir" Heitor antes de luta fatal com Aquiles.
Antes das epopeias de Homero, a única forma de permanência do sujeito na memória coletiva estava condicionada à circunstância de, depois de morto, ser cantado pelo aedo - caso em vida ousasse feitos gloriosos; e assim, pelo boca a boca dos poetas, tornar-se mito, imortal. Com Homero esses mitos que dependiam exclusivamente da memória e oralização destes poetas cantantes ganharam uma mídia material: os versos dodecassílabos da Ilíada e da Odisseia que nos dão acesso às personas de Heitor, Ulisses, Helena, Aquiles. Num salto chegamos aos retratos pintados por encomenda daqueles que pretendiam eternizar suas figuras: papas, reis, aristocratas. Séculos depois a fotografia não só tomou esse lugar como o popularizou. O cinema, num grau elevado, também garantiu a eternidade do corpos agora em movimento, olhares e depois timbres. Mas essa mídia-eternidade estava restrita à poucos eleitos, Chaplins e Garbos, mitos tão olímpicos quanto os das esculturas gregas. Dois passos adiante e chegamos ao agora: todos nós, quase que sem perceber, gerando dia a dia um acervo de memória sobre nossos corpos, gestos, vozes, pensamentos e elevando-os às nuvens binárias. Independentemente de feitos gloriosos, poder ou celebridade estamos nos digitalizando não apenas para um futuro distante mas para um futuro-semana-que-vem, e mesmo para o presente-ao-vivo do streaming, do skype.
Do aedo que constituía mitos, chegamos a esta década na qual somos aedos de nós mesmos. Homeros de nossa pequena epopeia. Não usamos o verso de doze sílabas mas o código binário que desconhecemos absolutamente. O-1 0-0 1-0 estamos subindo diariamente o nosso eu; e não apenas no sentido da constituição de um banco de dados digital sobre cada um de nós, mas também no sentido de que boa parte do ser que somos – supondo que de fato sejamos constituídos no outro, pelo olhar do outro – está se constituindo num campo de relações não concretas, relações digitais com o outro. Ou talvez, indo ao limite, tais relações digitais sejam intensas a tal ponto que possam dar conta de estabelecer relações concretas-digitais com o outro.
No limite do limite, um banco de dados do eu-digital poderá - via inteligência artificial (um algorítimo que reorganize meus discursos, falas-áudio e imagens) - garantir a eternidade do meu ser (concreto-digital) mesmo após a minha morte concreta-carnal. E entenda-se: não apenas como memória de narrativas de um corpo passado, mas como vida presente, mesmo que artificial/fantasmagórica. Nesta altura quem poderá atestar se estou morto ou vivo. Se sou corpo ou mito.
lourinelson 28/05/2011
"Não, eu não pretendo morrer sem luta e sem glória (akleios) como também sem algum feito cuja narrativa chegue aos homens por vir" Heitor antes de luta fatal com Aquiles.
Antes das epopeias de Homero, a única forma de permanência do sujeito na memória coletiva estava condicionada à circunstância de, depois de morto, ser cantado pelo aedo - caso em vida ousasse feitos gloriosos; e assim, pelo boca a boca dos poetas, tornar-se mito, imortal. Com Homero esses mitos que dependiam exclusivamente da memória e oralização destes poetas cantantes ganharam uma mídia material: os versos dodecassílabos da Ilíada e da Odisseia que nos dão acesso às personas de Heitor, Ulisses, Helena, Aquiles. Num salto chegamos aos retratos pintados por encomenda daqueles que pretendiam eternizar suas figuras: papas, reis, aristocratas. Séculos depois a fotografia não só tomou esse lugar como o popularizou. O cinema, num grau elevado, também garantiu a eternidade do corpos agora em movimento, olhares e depois timbres. Mas essa mídia-eternidade estava restrita à poucos eleitos, Chaplins e Garbos, mitos tão olímpicos quanto os das esculturas gregas. Dois passos adiante e chegamos ao agora: todos nós, quase que sem perceber, gerando dia a dia um acervo de memória sobre nossos corpos, gestos, vozes, pensamentos e elevando-os às nuvens binárias. Independentemente de feitos gloriosos, poder ou celebridade estamos nos digitalizando não apenas para um futuro distante mas para um futuro-semana-que-vem, e mesmo para o presente-ao-vivo do streaming, do skype.
Do aedo que constituía mitos, chegamos a esta década na qual somos aedos de nós mesmos. Homeros de nossa pequena epopeia. Não usamos o verso de doze sílabas mas o código binário que desconhecemos absolutamente. O-1 0-0 1-0 estamos subindo diariamente o nosso eu; e não apenas no sentido da constituição de um banco de dados digital sobre cada um de nós, mas também no sentido de que boa parte do ser que somos – supondo que de fato sejamos constituídos no outro, pelo olhar do outro – está se constituindo num campo de relações não concretas, relações digitais com o outro. Ou talvez, indo ao limite, tais relações digitais sejam intensas a tal ponto que possam dar conta de estabelecer relações concretas-digitais com o outro.
No limite do limite, um banco de dados do eu-digital poderá - via inteligência artificial (um algorítimo que reorganize meus discursos, falas-áudio e imagens) - garantir a eternidade do meu ser (concreto-digital) mesmo após a minha morte concreta-carnal. E entenda-se: não apenas como memória de narrativas de um corpo passado, mas como vida presente, mesmo que artificial/fantasmagórica. Nesta altura quem poderá atestar se estou morto ou vivo. Se sou corpo ou mito.
lourinelson 28/05/2011
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