Sobre a interpretação: Notas para uma conferência
1.
O que quer dizer o ato de interpretar uma narrativa? Muitos já chamaram a atenção para a maneira como Kafka lia A metamorfose em voz alta: o riso interrompia sua leitura. Na gravação de alguns fragmentos de Finnegans Wake, Joyce, por sua vez, salta de uma consoante a outra em um tom jocoso, meio circense, como se nos avisasse que se trata de um relato cômico.
2.
Em seu romance Cicatrices, Saer interpreta (digamos) o conto “Exame da obra de Herbert Quain”, de Borges. No conto, descreve-se o projeto para um romance “regressivo, ramificado”, onde se narram simultaneamente todas as alternativas possíveis de uma história. Apesar de, pelo que me lembro, a crítica não ter percebido essa relação, é evidente que Saer se propôs a escrever aquela ficção em potencial. Os capítulos de Cicatrices ecoam o título da novela de Quain (April, March) e narram quatro desenvolvimentos possíveis – e simultâneos – de um mesmo argumento, com suas variantes e mutações.
3.
Em 62 Modelo para armar, Cortázar utiliza um capítulo de O jogo da amarelinha como indício ou embrião de uma ficção possível. O romance se desenrola a partir da ideia de figura, uma configuração espacial que determina a vida dos personagens. Assim, ele retoma e leva ao limite o procedimento formal de alguns de seus melhores contos (“A noite de barriga para cima”, “Axolote”, “A flor amarela”, “Todos os fogos o fogo”, “O outro céu”), em que já tentava ir além das estruturas lineares da narrativa e estabelecia conexões espaciais entre diferentes episódios e épocas de um relato múltiplo.
4.
É possível analisar esse procedimento como uma breve definição da interpretação musical: “Uma partitura é simplesmente um indício de música em potencial” (R. Vaughan Williams; Some thoughts on Beethoven’s Choral Symphony with writings on other musical subjects). Um relato sempre pode ser interpretado, ou seja, narrado outra vez. A realização dessa forma em potencial também está ligada à memória de outras tradições interpretativas. Antes de gravar o movimento lento do concerto em sol menor de Bach, o pianista Glenn Gould antecipou ao seu produtor Andrew Kazin: “Vou tocar com vozes interiores e síncopes de toda a sorte, numa linha parecida com a de Wanda Landowska, e com um clima no estilo do Modern Jazz Quartet” (cf. Kevin Bazzana: Vida y Arte de Glenn Gould).
Em uma conferência sobre Hawthorne em 1949, Borges imaginou no fim do escritor um conto futuro, o embrião de uma história possível. “Sua morte foi tranquila e misteriosa, pois ocorreu durante um sonho. Nada nos impede de imaginar que morreu sonhando, e até podemos inventar a história que ele sonhava – a última de uma série infinita – e a maneira como foi coroada ou apagada pela morte. Talvez algum dia eu a escreva, tratando de resgatar com um conto aceitável essa lição digressiva farta e deficiente...”
O conto anunciado, como se sabe, é “O Sul”. Ao contá-lo, Borges utilizou seus antigos temas – antes de morrer, o bibliotecário Dahlmann sonha que morre em um duelo de facas –, mas à luz de novas interpretações. O tema é uma variação do conto de Ambrose Bierce “An Occurrence at Owl Creek Bridge”, cujo protagonista, no momento em que vai ser executado, sonha ou tem uma alucinação que o permite libertar-se e fugir, ainda que na realidade ele já esteja morrendo na forca. O mesmo acontece em “The Snows of Kilimanjaro”, de Hemingway, onde, prestes a morrer de gangrena em um safári pela África, o escritor pensa ver o avião que vem para resgatá-lo. Borges, diferentemente desses admiráveis modelos, deixa o final em suspenso, diluindo a revelação da morte, e seu conto pode ser interpretado não apenas como um sonho, mas também como um conto realista em que Dahlmann de fato se recupera, sai do hospital, viaja para o Sul de trem, desce em um povoado e entra num armazém de campo onde é desafiado, escolhendo a morte em um duelo de facas. As duas interpretações estão presentes no mesmo conto, e Borges insinua ambas alternativas no argumento inicial: “foi coroada ou apagada pela morte”, ele diz na conferência, e no conto manteve a dupla interpretação (“‘Amanhã acordarei na estância’, pensava, e era como se fosse dois homens a um só tempo: o que avançava pela geografia outonal e outro, preso em um sanatório”). Borges narra duas anedotas que se mesclam, assim tornando possíveis duas interpretações. O autor modula um tema principal com variantes e motivos que se repetem nas duas tramas e cumprem uma função diferente em cada caso, à maneira (metaforicamente falando) das Variações Goldberg.
Em “A noite de barriga para cima”, Cortázar se propõe a narrar o mesmo tema: um motociclista que sofreu um acidente na cidade sonha, no pesadelo de sua febre, que será sacrificado em uma cerimônia ritual no México pré-colombiano, mas no fim insinua que é o longínquo moteca quem, ao morrer, sonha com uma situação incompreensível, em que morre ao conduzir um cavalo metálico e rugidor. Em outro nível, Cortázar postula que os dois homens que morrem, distanciados no tempo e no espaço, são na verdade um só (embora essa possibilidade seja apenas insinuada, dentre outros detalhes, pela condensação de palavras que dá nome à tribo inventada, moteca).
5.
Lembro que anos atrás, em uma disciplina sobre as novelas breves de Onetti, em Puán, ou seja, no curso de Letras da UBA, os estudantes explicavam com entusiasmo as obscuras e sempre intrigantes nouvelles de Onetti. Em Para uma tumba sem nome, há uma mulher com um carneirinho na estação Constitución. Seria o devir animal? Em La cara de la desgracia – que conta a história de uma moça muda que é assassinada –, não haveria uma sinédoque do ato de calar-se perante a lei? Circulavam hipóteses, sempre brilhantes e surpreendentes, mas em vez de interpretar o texto os estudantes apenas teorizavam em cima dele. Um dia rompi o circuito e pedi que resumissem para mim a anedota de Tan triste como ella. Estupefação, um escândalo. Sim, deveriam ler a história muito cuidadosamente e fazer um resumo do argumento. Seria essa leitura uma interpretação? Foi, pois cada um dos estudantes precisou tomar decisões no entrevero da história, sendo obrigado a definir um dos sentidos implícitos e aludir aos outros possíveis. A partir daí a discussão poderia ser enriquecida, pois todos eram especialistas no texto, já que o haviam lido como se precisassem reescrevê-lo. Imaginei que algum dos estudantes copiaria o texto tal como era – ou apenas com variações imperceptíveis – e me entregaria como seu resumo de leitura, mas isso não aconteceu.
6.
Poderíamos problematizar a questão da interpretação de outra maneira: no fim das contas, o que significa entender uma narrativa? Ou, em todo caso, que tipo de compreensão está em jogo em uma narrativa? Podemos lembrar do exemplo dado pelo romancista inglês E. M. Forster em seu livro Aspects of the Novel: “O rei morreu, e em seguida morreu a rainha” é um acontecimento. “O rei morreu, e em seguida morreu a rainha de tristeza” é uma narrativa. A sucessão temporal é mantida, mas a sensação de causalidade serve para articulá-la e lhe atribuir um sentido. A motivação – por que as coisas acontecem? – é a base da interpretação narrativa. Na verdade, a questão é sempre como seguir uma narrativa. Dado o seu caráter sempre provisório, muitas vezes uma narrativa é respondida com outra (que não a anula, mas a contradiz ou complementa), e essa rede de textos que se contrapõem é uma das linhas centrais da história da cultura. Enfim, devemos lembrar aquilo que apontava Carlo Ginzburg (em Ojazos de madera): a palavra latina interpretatio significa tradução. A narrativa raciocina por meio de exemplos, argumenta com argumentos, e sempre pode ser traduzida, ou seja, ser narrada outra vez, em outro tom e com outra linguagem.
7.
Joyce propõe seu romance Ulysses como uma versão da Odisseia; a metempsicose, palavra que Molly não entende no início do dia, sugere que a alma do herói grego reencarnou em Bloom, o judeu errante que vaga por Dublin. Ressurge a história do viajante, do forasteiro, do astuto Odisseu, do polytropos, do homem de muitas viagens, que está longe e sempre em situação precária, e essa história é narrada e interpretada outras vezes em diferentes épocas por Dante, Virgílio, Kafka e Canetti (e cada versão interpreta – e traduz – o argumento de modo distinto).
8.
O mesmo pode ser dito de Dom Quixote. Lionel Trilling (em A imaginação liberal) apontou que “toda a prosa de ficção é uma variação sobre o tema do Quixote”. Mas talvez não seja a prosa de ficção que encontra seu fundamento nesse romance, mas sim a interpretação pessoal da ficção. Sabemos que o herói do primeiro romance é um leitor de romances, um homem apaixonado pelas ficções heroicas que sai para o mundo real e tenta viver aquilo que leu. Encontramos essa figura do leitor apaixonado e crédulo diversas vezes ao longo da história do gênero: Madame Bovary, de Flaubert, é claro, mas também Julien Sorel de Stendhal ou Raskolnikov, de Dostoiévski, e o mesmo acontece com Silvio Astier em O brinquedo raivoso, de Arlt (“Fui apresentado aos prazeres da literatura bandoleira...”, começa o romance, e Astier não faz outra coisa senão viver – ou tentar viver – aquilo que leu).
9.
Em O beijo da Mulher Aranha, de Puig, os dois protagonistas presos em uma cela discutem as interpretações de diferentes ficções como forma de passar o tempo, mas também de conhecerem e seduzirem um ao outro. Molina, o jovem gay, conta a história de filmes, e ao contá-las se identifica com a atmosfera sentimental do cinema de Hollywood; por sua vez, Arregui, o guerrilheiro marxista, só vê naqueles filmes a alienação burguesa e a manipulação ideológica. Em certo sentido, o livro é uma discussão sobre a ficção e seu poder, sobre as maneiras de interpretar a narrativa e a fantasia. O extraordinário (e aqui temos outra demonstração da capacidade narrativa de Puig) é que os dois acabam “atuando” no filme do outro: Arregui se transforma em um herói romântico, apaixonado e sensível, enquanto Molina morre heroicamente, assassinado durante uma reunião política pela polícia ou pelos guerrilheiros do grupo Arregui (não é elucidado qual seria o verdadeiro responsável).
10.
O romance já contou muitas vezes a história do herói como intérprete ou decifrador de signos; talvez Marcel, o narrador de Em busca do tempo perdido, tenha sido o protagonista máximo dessa odisseia da interpretação (e o protagonista obsessivo dos romances de Thomas Bernhard, uma de suas realizações mais extremas). Com frequência, a narrativa transformou a compreensão distorcida no centro da trama. Já não se tratava das interpretações equivocadas do oráculo sagrado que, na Tragédia, levava os heróis à decisão inevitável e à morte. Em vez disso, o protagonista do romance busca o sentido na deambulação pela cidade, em certos gestos triviais, em algumas palavras equivocadas, nos textos mal lidos (ou lidos com fervor excessivo). A interpretação equivocada está mais presente em nossa cultura – e em nossas vidas pessoais – do que nos resignamos a aceitar. Por isso, talvez o romance tenha sido o gênero que melhor mostrou o desconcerto da significação – e a busca do sentido (do porquê de as coisas acontecerem) – em um mundo de onde os deuses desertaram.
*Traduzido por Bruno Cobalchini Mattos
* Crédito foto: La Nación
http://www.fronteiras.com/canalfronteiras/entrevistas/?16%2C318
quinta-feira, 18 de dezembro de 2014
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