quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
Por José Arbex Jr - A César o que é de César
Quando comecei a ler o já famoso texto de César Benjamin: “Os filhos do Brasil”, publicado pelo jornal Folha de S. Paulo em 27 de novembro, fiquei orgulhoso de ser da esquerda. E mais ainda: de ter compartilhado com o autor do texto alguns momentos emocionantes de nossa luta comum, como o final da marcha do MST para Brasília, em 1997, quando me encontrei pessoalmente com ele, pela primeira vez. Os parágrafos iniciais do texto são primorosos. Muito bem escritos, compõem uma narrativa densa, sedutora, que vai criando no leitor uma vontade de querer saber mais sobre uma história que nunca foi contada direito: a história da ditadura militar, dos porões, das torturas, das prisões, dos seres humanos condenados à ignomínia. Benjamin soube retratar com grande humanidade os seus companheiros temporários de cela. Resgatou-lhes a história, a identidade, a face profundamente humana.
Mas aí, veio a facada, o golpe inesperado, a decepção, a tristeza profunda. Benjamin relatou, no mesmo texto, uma conversa supostamente mantida com Luís Inácio Lula da Silva, em São Paulo, em 1994, durante a campanha à Presidência do Brasil. Lula teria “confessado”, então, entre amigos, que, na prisão, tentou seduzir, sem sucesso, um militante de uma organização de esquerda. Benjamin faz uma comparação entre o assédio descrito por Lula e o temor que ele mesmo, Benjamin, sentiu, quando preso, de ser “currado” por outros detentos.
Não entendi nada. Li de novo, reli, tentei buscar alguma ironia oculta, algo que justificasse, no plano do próprio texto, o absolutamente injustificável paralelo entre estupradores que pululam nas prisões brasileiras – em geral, seres humanos reduzidos a condições quase completamente animalescas pelo próprio sistema carcerário, e/ou por uma vida anterior mergulhada na mais profunda miséria econômica, ideológica e afetiva – e Lula, que não estuprou ninguém, mas que, supostamente, comentou ter sentido o desejo de manter relações sexuais com um companheiro de cela que não cedeu aos seus desejos. Não quis acreditar que alguém dotado com os recursos intelectuais de Benjamin, adquiridos ao longo de sua longa história de luta pela liberdade e pela dignidade humana, pudesse cair em um pântano tão sórdido e profundo. Mas não encontrei nada no texto de Benjamin que permitisse uma interpretação positiva. Ou melhor: encontrei “o” nada: o vazio absoluto; vazio de sentido, o vazio da total falta de perspectivas, o vazio de um rancor desmedido.
(Antes de prosseguir, esclareço logo: não sou e nunca fui “lulista”; não sou mais já fui petista; não simpatizo com a maioria das medidas de governo adotadas por Lula, e por isso sou totalmente favorável à crítica de esquerda ao seu governo. Mais precisamente, creio que Lula pode e deve ser criticado por aquilo que fez, mas acho muito estranho ele ser atacado por aquilo que NÃO praticou.)
Vamos agora considerar, por um segundo, que Lula realmente fez o que supostamente disse ter feito. Isto é, que em dado momento tentou seduzir – seduzir, note bem, não estuprar -- o colega de cela. E daí? O que se pode concluir disso? Qual seria, nesse caso, o crime de Lula? O exercício, o desejo da homossexualidade? Estaremos, então, diante de um texto homofóbico?
Ainda segundo o próprio Benjamin, como já observado, Lula teria comentado o caso numa roda de amigos. Estamos, então, diante de um gravíssimo precedente, aberto pelo próprio Benjamin. De hoje em diante, todos teremos que suspeitar dos nossos amigos, teremos que nos policiar para que nossas palavras não sejam, eventualmente, atiradas contra nós por algum “traíra”, algum “dedo duro”, algum “cagueta”, algum Judas, algum oportunista que resolva tirar proveito de uma situação de cumplicidade. Revivemos, então, a era da delação (Premiada? Que o prêmio, no caso, teria sido pago a Benjamin?), a era da intriga, da fofoca, da futrica, da artimanha, da safadeza. Que vergonha! (Isso tudo me faz lembrar a famosa oração de Marco Antônio, no brilhante texto de Shakespeare: “Poderoso César, terás então descido a tão baixo nível?”)
Benjamin utilizou a imprensa dos patrões para atacar um expoente do movimento de esquerda do Brasil. Claro, claro, claro: sempre se pode alegar que Lula não é de esquerda, como ele mesmo já disse e como eu, pessoalmente, avalio. Mas há um abismo entre considerações de caráter individual, feitas por indivíduos privados e isolados, ou mesmo por grupos e seitas, e a realidade política concreta, historicamente determinada pela luta de classes. No contexto brasileiro, em que as alternativas concretas ao governo Lula (e à sua imagem refratada Dilma Rousseff) são figuras sinistras como as de José Serra e Aécio Neves, Lula surge como um expoente à esquerda do espectro político, com algumas conseqüências importantes para a luta de classes na América Latina: por exemplo, a condução exemplar do governo brasileiro no caso de Honduras (embora feiamente chamuscada pelo desastre no Haiti), a recusa em avalizar o acordo das bases militares estadunidenses com a Colômbia e a denúncia permanente do bloqueio de Cuba. Para não mencionar o fato de que a figura de Lula, malgré lui même, inspira movimentos de resistência ao capital em todo o mundo. Disso não se conclui, automaticamente, que a esquerda deva, necessariamente, apoiar o governo Lula, ou mesmo apostar na eleição de Dilma. Ao contrário, deve aproveitar as contradições, os paradoxos e as ambigüidades para fortalecer o seu próprio campo. Mas Benjamin preferiu fortalecer as correntes representadas pelo jornal dos campos Elíseos.
Não por acaso, a Folha de S. Paulo cedeu o espaço todo pedido por Benjamin. Cederia mais, se necessário fosse. Benjamin conhece a teoria marxista e sabe, com Gramsci, que a mídia dos patrões é o verdadeiro organizador coletivo, é o grande partido do capital. Triste é o fato de ele ter arregaçado as mangas para trabalhar por tal partido. E pior: Benjamin sabe que o falso paralelo que tentou traçar entre os predadores das prisões da ditadura e o prisioneiro Lula seria muito mais verdadeiro se, no lugar de Lula, ele colocasse os donos dos jornais para os quais hoje escreve.
Todo o encanto produzido pelos primeiros parágrafos do texto de César Benjamin foi transformado em fel a partir do momento em que se instaurou a delação, o oportunismo, o absurdo. Lula não estuprou o seu companheiro de cela, mas Benjamin violentou, com alto grau de sadomasoquismo, a própria consciência e uma história repleta de glórias. Requiescate in pace.
domingo, 11 de outubro de 2009
José Arbex Jr.
Os velhos uruburibes atacam na nova América Latina
Qual a relação entre o golpe desferido em 28 de junho, em Honduras, que depôs o presidente eleito Manuel Zelaya, e a disposição do presidente colombiano Álvaro Uribe de permitir a instalação de três bases militares estadunidenses em seu país, anunciada com estardalhaço no início de agosto? Aparentemente, nenhuma.
Os golpistas que depuseram o presidente Manuel Zelaya tinham seus interesses próprios: eles abortaram um processo de consulta popular sobre a eventual convocação de uma Assembléia Constituinte, que, obviamente, colocaria em risco o monopólio do poder exercido há três décadas pelos dois partidos das oligarquias: o Liberal (ao qual
pertencem tanto Zelaya quanto os próprios golpistas) e o Nacional. Uribe, de sua parte, resolveu, soberanamente, abrir mão da soberania, e permitir a instalação das novas bases estadunidenses com o objetivo de reforçar o combate contra o narcotráfico e as Farc, tendo como justificativa o recente fechamento da base militar dos Estados Unidos em Manta, no Equador, por determinação do presidente Rafael Correa.
Conclusão: uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, para utilizar um aforismo do filósofo máximo do neopetismo, José Genoíno. Essa versão seria até defensável, não fosse a intromissão de uma palavrinha mágica, que muda tudo: energia (petróleo, biodiversidade, água, minérios etc.).
Honduras é rica em petróleo, como demonstram prospecções feitas por uma empresa norueguesa, contratada por Zelaya, que também resolveu integrar o seu país ao grupo Petrocaribe e à Alba (Aliança Bolivariana das Américas), ambos criados pelo governo Chávez. Não bastasse isso – informa Frida Modak, ex-secretária de imprensa do governo Salvador Allende –, o projeto de Zelaya, no caso de uma eventual nova constituição, era estabelecer que os recursos naturais hondurenhos não poderiam ser entregues a outros países. Isto é, Zelaya preparava-se para lançar a sua própria versão da campanha “o petróleo é nosso”. E, por fim, a nova Constituição, segundo Zelaya, estabeleceria o fim do monopólio dos meios de comunicação, assegurando o direito à participação das comunidades (o que explica, aliás, o apoio dos “barões da mídia” local ao golpe).
Quem não viu esse filme antes? O programa de governo de Zelaya – não importam, aqui, suas motivações – contraria os interesses dos grupos estadunidenses que já controlam uma parte substantiva das reservas latinoamericanas. Seria muita ingenuidade – para dizer o mínimo – imaginar que o golpe em Honduras foi articulado sem a participação do grupo neoconservador incrustado no Departamento de Estado dos Estados Unidos e porta-voz das empresas que exploram as reservas mundiais de petróleo e fontes de energia, o mesmo grupo que articulou a invasão do Iraque, entre outras coisas. O próprio embaixador estadunidense em Honduras, Hugo Llores, foi nomeado pelo governo Bush-Cheney.
Influência regional
Há, aqui, um interessantíssimo fator complicador. O governo Barack Obama, desejoso de recuperar a influência estadunidense no hemisfério após o desastre Bush, multiplicou declarações segundo as quais acabaram-se os tempos em que os Estados Unidos se julgavam no direito de ditar os rumos da América Latina. Como reflexo dos supostos “novos tempos”, a OEA suspendeu o veto histórico à participação de Cuba e a Casa Branca abriu novas possibilidades de diálogo com Havana. Para os republicanos e neoconservadores estadunidenses – e mesmo para uma parcela “ortodoxa” dos democratas -, essas medidas equivalem a um inaceitável abandono da Doutrina Monroe (“a América para os americanos”), que, desde 1823, orienta a política externa dos Estados Unidos para a América Latina. Esse quadro estabelece, no mínimo, uma tensão entre a retórica de Obama e a prática dos responsáveis pela política externa estadunidense.
Tensão semelhante foi criada em 1975 – observa o pesquisador estadunidense Greg Grandin –, quando, após o escândalo de Watergate e o fiasco do Vietnã, os arquitetos da política externa do governo Jimmy Carter declararam “obsoleta” a Doutrina Monroe, considerada “inapropriada e irrelevante para as novas realidades e tendências futuras” por Sol Linowitz, então presidente da Comissão para as Relações Estados Unidos – América Latina. Foram os anos que deram impulso ao processo de “transição” das ditaduras militares para as chamadas novas “democracias”. A reação não se fez esperar: veio na forma da eleição de Ronald Reagan e a tomada de assalto da Casa Branca pelos neoconservadores arquitetos do neoliberalismo (mantido e ampliado, de modo muito eficaz, nos anos 90, pelo democrata Bill Clinton). A série “Rambo”, não por acaso lançada por Hollywood logo após a posse de Reagan, reflete com exatidão o espírito da época.
A América Latina, em particular, foi objeto de ataque, já em 1980, por parte de um grupo de intelectuais e políticos estadunidenses de ultradireita, que lançou o Documento de Santa Fé (nome da cidade do Estado do Novo México onde o seu primeiro encontro foi realizado), contendo diretrizes que o presidente Ronald Reagan deveria adotar
para as Américas. O centro do documento é, precisamente, a defesa da Doutrina Monroe. Fazia parte do grupo o historiador Lewis Tambs, depois indicado para o cargo de embaixador dos Estados Unidos na Colômbia, e criador, nos anos 80, da expressão “narcoterrorismo”, para caracterizar a atividade dos grupos guerrilheiros colombianos.
Em 8 de abril de 1986, o então presidente Ronald Reagan previu, pela primeira vez, mediante a adoção de um decreto, a possibilidade de utilizar unidades militares de seu país contra narcotraficantes. Estes passaram a ser considerados “ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos”.
Para ler o artigo completo e outras reportagens confira a edição de setembro da revista Caros Amigos, já nas bancas, ou click aqui e compre a versão digital da Caros Amigos.
segunda-feira, 5 de outubro de 2009
Odorico Mendes
Ilíada na transcriação de Odorico
Argumento do Livro III
Os dois exércitos avançam um contra o outro. — Páris a frente dos
Troianos provoca os mais bravos dos Gregos ao combate. — Menelau
vai ao seu encontro, mas Páris amedrontado busca refúgio entre os
Troianos. — Exprobrações de Heitor. — Resposta de Páris ; propõe
sustentar um combate com Menelau do qual Helena será o prémio. —
Heitor, contente leva o desafio de seu irmão ao herói Grego. — Dis-
curso de Menelau. — Preparam-se sacrifícios. — Entretanto íris,
tomando a forma de Laodice, vai ter com Helena, e lhe anuncia as
disposições dos dois exércitos. — Helena vai às portas Ceias, onde
ela acha a assembleia dos velhos Troianos, que fazem o elogio de sua
beleza. — Ela designa a Príamo os principais chefes Gregos. —
Retrato de Agamémnon, de Ulisses, de Menelau e de Ajax, entre os
quais Helena sente não ver Castor e Pólux, seus irmãos. — Por
conselho de Ideu, Príamo vai com Antenor ao meio dos dois exércitos.
— Agamémnon levanta-se, chama a cólera dos deuses sobre os perjuros
e sacrifica. — Discursos de Príamo, que volta a ílio para não teste-
munhar uma luta em que um de seus filhos pode ser vítima. —
Aprestos e fases diversas do combate. — Páris vai sucumbir quando
Ténus o livra dos golpes de Menelau, o transporta ao leito nupcial, e
lhe faz esquecer a derrota nos braços de Helena, que resiste a princípio
e cede enfim. — Menelau procura em vão seu rival; e Agamémnon
reclama para seu irmão o prémio da vitória.
Canto III
Os Teucros em batalha, após seus cabos,
Gritando avançam: tal se eleva às nuvens
Dos grous o grasno, que em aéreas turmas,
Da invernada e friagens desertores,
Contra o povo Pigmeu com ruína e morte,
O Oceano transvoam. Desejosos
De entreajudar-se, tácitos os Gregos,
Força e coragem respirando, marcham.
Qual se, ingrato ao pastor, Noto enche os cumes
De névoa, mais que a noite ao furto asada,
Pois que a tiro de pedra mal se enxerga;
Aos pés túrbido pó não menos surge
Dos que iam pelo campo acelerados.
Perto eles já, da prima Troica fila Páris nítido sai: com arco e espada,
Pele de um pardo enverga; de énea ponta
A vibrar dois hastis, os mais valentes
Um por um desafia. Em grave passo
Vendo-o vir Menelau, como esfaimado
Leão exulta que, ao topar fornido
Galheiro cervo ou corpulenta corça,
Ferra-o voraz, embora em cerco o apertem
Viçosos moços, vívidos subujos.
Do coche em armas vingativo salta;
Mas Alexandre, que na frente o avista,
Para os seus retraiu-se estremecendo.
Se alguém no serro ou brenha encontra serpe,
Trépido recuando empalidece:
O deiforme elegante assim do Atrida
Aos suberbos Troianos retrocede.
Agro o invectiva Heitor: "Funesto Páris ,
Mulherengo falaz, nunca nasceras;
Ou solteiro acabar melhor te fora
Que escárnio a todos ser. És sim bonito;
O Argeu cornado, que pugnaz te cria,
Ri de que alma tão vil teu corpo aloje.
A navegar, poltrão, forçaste amigos,
Da Ápia ousando a beleza peregrina,
Consorte e irmã de heróis, trazer contigo?
E és a teu pai flagelo, aos teus e à pátria,
Mofa de estranhos, de ti mesmo opróbrio?
Fugiste a Menelau? provaras que homem
Houve as primícias da mulher que usurpas;
Cítara, nem madeixas, nem beldade,
Nem Vénus com seus mimos te valera,
No pó submerso. Por devida paga,
Se os nossos Teucros tímidos não fossem,
Tu já vestiras túnica de seixos."
E o formoso Alexandre: "Essa fraterna
Mereço, Heitor; mas no âmago tens rijo
Coração, qual secure que, aumentando
Ao pulso a robustez, penetra o lenho,
Talha e em navais aprestos o afeiçoa.
Da áurea Vénus os prémios não me exprobres;
Nem são de recusar os dons celestes,
Nem alvedrio é nosso o consegui-los.
Se me queres na liça, Aqueus e Troas
Sossega: eu só com Menelau a braços
Dispute Helena; o vencedor aceite
E reconduza a dama e os seus tesouros.
Ferido o pacto, em sólida amizade
Neste pingue torrão fiquem-se os nossos;
De cavalos fecunda aqueles Argos
E Acaia busquem de gentis mulheres."
Folga Heitor, e hasta em punho, os seus retendo,
Se adianta; mas alvo era de pedras,
Frechas e lanças, té bradar o Atrida:
"Basta, Aquivos, cessai, crinita gente;
Que acena o galeato herói Priâmeo."
Ei-los subitamente se aquietam,
E chama Heitor: "Sabei de mim, Dardânios
E Aqueus de fina greva, o que Alexandre
Propõe, da guerra autor. De parte a parte
Largadas no almo chão fulgúreas armas,
Menelau marcial a sós com ele
Dispute Helena; o vencedor aceite
E reconduza a dama e os seus tesouros;
Nós outros aliança e paz firamos."
Calam-se, e Menelau sonoro troa:
"Sede-me atentos; esta angústia é minha.
Atormenta-me a guerra: Aqueus e Troas
Por mim, por Alexandre origem dela,
Nímio têm padecido! Os mais pactuem;
Morra qualquer dos dois que a Parca assine.
Preta imole-se à Terra uma cordeira,
Cordeiro branco ao Sol, branco ao Satúrnio.
Mas Príamo o tratado ratifique;
Seus filhos com perfídia os juramentos
Podem quebrar, sem pejo do Supremo.
Dos mancebos a mente é sempre instável:
O ancião, reportando-se ao passado,
Olha ao futuro, concilia todos."
Alegram-se os Trojúgenas e Aquivos,
Terminar concebendo a luta .infausta.
Dos coches apeando, os enfileiram;
As armas despem, que ante si descansam:
Breve espaço medeia. Dois arautos
Expede logo Heitor, que as reses tragam,
E a Príamo convida. A rês terceira
Manda vir Agamémnon por Taltíbio,
Que ao rei submisso para as naus caminha.
A Helena bracicândida vem Íris,
Nas feições de Laodice, do Antenório
Príncipe Helicaon dilecta esposa,
E a mais bela de Príamo gerada.
Acha-a tecendo em casa dupla trama,
Luzida e larga, onde as acções bordava
Que arnesados Aqueus e équites Frígios
Sustentavam por ela encruecidos.
Chega a núncia veloz: "Sus, ninfa amada,
Contempla e admira os Graios e os Troianos:
Não há muito, em combates lagrimosos
Ardiam por matanças; quedos ora,
Sem contenda, arrimados aos escudos,
Os longos piques junto a si pregaram.
Só lança a lança Menelau com Páris
Vai duelar: do que vencer o nome
Terás de queridíssima consorte."
Assim na alma a saudade se lhe estampa
Do marido e dos lares e parentes.
De véu cândido ao rosto, água nos olhos,
Saiu do gineceu; não vai sozinha,
Vai com fàmulas duas, a Piteia
Etra e Climene de bovinos lumes.
As portas Ceias já de assento encontra
A Príamo na torre, e Panto e Clício,
Hiceteon belaz, Timetes, Lampo,
Mais Antenor e Ucalegon sisudos,
Que por velhos abstinham-se da guerra;
Porém, bons oradores, semelhavam
A cigarras que, n’árvore pousadas,
A selva adoçam com suave canto.
À torre vendo aproximar-se Helena,
Dizem baixo entre si: "Não sem motivo
Povos rivais aturam tantos males!
Que porte e garbo! efígie é das deidades.
Mas, tal qual seja, embarque; a nós de exício
Não continue a ser e a nossos filhos."
Então chamou-a Príamo: "Anda, ó cara,
Teu cônjuge primeiro e afins e amigos
Atenta ao pé de mim. Não és culpada;
Guerra tão crua, os deuses ma enviaram.
Aquele Argeu quem é, bizarro e esbelto?
Outros se lhe avantajam na estatura;
Mas nunca os olhos meus tamanho viram
Decoro e majestade: um rei parece."
Respondeu-lhe a mais nobre das mulheres:
"Amado sogro, temo-te e venero;
Oh! morte eu padecera, antes que o toro
Por teu Páris tivesse abandonado,
E os irmãos e a só filha e as companheiras I
Eu vivo e em mesto pranto me definho.
Mas vou satisfazer-te: o herói que apontas
É rei sublime e campeão tremendo,
O pujante Agamémnon; que vergonha!
Se um dia o mereci, foi meu cunhado."
Pasma e exclama o ancião: "Feliz Atrida!
Mimoso da fortuna, que em florentes
Graios dominas! Muitos vi peritos
Cavaleiros na Frigia pampinosa,
E as de Migdon divino e Otreu falanges,
Que do Sangário às bordas acampavam;
Lá como auxiliar no ataque estive
Das viris Amazonas: mor quantia
De olhinegros Aquivos se apresentam."
Prossegue a interrogá-la: "A quem do Atrida
Sobrepuja a cabeça, dize ó filha,
E é dos peitos mais largo e das espáduas?
Em terra as armas, as fileiras corre:
De espessa lã guieiro se me antolha
Que entre infindo passeia alvo rebanho."
Torna a Dial vergôntea: "Esse o prudente
Laércio Ulisses é, de Itaca rude,
Em todo estratagema e ardis sabido."
E Antenor: "A verdade, ó mulher, falas.
Por teu respeito aqui já veio Ulisses
De embaixador com Menelau: prestei-lhes
Uma franca e amigável hospedagem.
Discerni a cordura e o génio de ambos.
Eles em pé, dos Teucros no conselho,
Menelau sobranceiros tinha os ombros;
Sentados, o Laércio mais nobreza.
Não multíloquo e vago, embora jovem,
Sim conciso os discursos bem tecendo,
Razões argutas Menelau volvia.
Mas, se o ítaco a orar se levantava,
No chão pregada a vista, o ceptro imóvel,
Direito e sem pender, o creras homem
Inexperto, iracundo, ou quase louco;
Do imo ao soltar a voz, qual neve hiberna
As palavras em flocos lhe choviam:
Com ele então ninguém se comparasse;
Na facúndia e no gesto era um portento."
"Quem é, pergunta Príamo, o guerreiro
Que, espadaúdo e grande, a fronte acima
Dos Dânaos assoberba?" — "É, disse a nora,
Ajax, dos Gregos fortaleza e muro.
Idomeneu Cretense ali dos cabos,
Como um deus, se rodeia: ao vir de Creta,
De Menelau nos paços o acolhíamos.
Outros vejo daqui de negros olhos,
Que eu fácil nomeara; mas não vejo
Castor na picaria, insigne Pólux
No pugilato, príncipes das gentes,
Maternos meus irmãos: ou não largaram
Da leda Esparta, ou nos baixéis detidos,
Pejam-se de empenhar-se nas pelejas
Que, por meu vitupério, se prolongam".
Oculto lhe era que ambos já na doce
Pátria Lacedemónia descansavam.
Traziam da cidade os messageiros
As hóstias e odre cheio do jucundo
Bom licor de natio; Ideu cratera
Também traz luzidia e copos de ouro,
E assim convida o rei: "Sus, Laomedóncio;
Magnatas Frígios e emalhados Gregos
Rogam desças e o pacto nos confirmes.
De hastas com Menelau contenda Páris :
Quem vencer haja Helena e seus tesouros.
Ferida a paz, em Tróia ficaremos;
De cavalos fecunda aqueles Argos
E Acaia busquem de gentis mulheres."
Manda o coche arreiar trémulo o velho:
Obedecem-lhe; sobe e os loros tira;
Sobe Antenor com ele; os corredores,
Das portas Ceias despedidos, param.
Já do assento vistoso desmontados,
Entre Aqueus e Troianos caminhavam;
Ergue-se o mor Atrida e o cauto Ulisses.
Prestes as reses, na cratera o vinho
Os arautos resplendidos misturam,
Água às mãos régias cristalina vertem.
Puxa Agamémnon do cutelo, apenso
Da bainha da espada formidável,
Raspa a moleira às vítimas, e o pêlo
Os arautos aos próceres dividem;
Ele alça deprecando a voz e as palmas:
"Do Ida augusto senhor, máximo padre,
Sol que vês e ouves tudo, rios, Terra,
Vós que no inferno castigais perjuros,
Desta aliança fiadores sede.
Se Páris vence a Menelau, conserve
Toda a riqueza e a dama, e nós voguemos;
Se o vence o louro Atrida, aqui nos rendam
Helena e o seu tosouro, e por memória
Multa condigna paguem: morto Páris ,
Se Príamo e seus filhos ma refusam,
Té que os force ao dever, não largo as armas."
Nisto, as gargantas aos cordeiros sangra:
Exânimes no solo e palpitantes,
Do éreo instrumento ao gume a vida perdem.
Rasos os copos, a cratera esgotam,
E ao Supremo libando o voto expressam,
Ou cada Argivo ou Teucro: "Jove eterno
E mais deuses, no chão, como este vinho,
Dos que primeiro o pacto violarem
Esparjam-se os miolos e os dos filhos,
Sejam dos outros as mulheres suas."
Nada firma o Satúrnio, e o rei Dardânio:
"Ó Troas, balbucia, Aqueus, ouvi-me:
Volto a llion ventosa; que estes olhos
Entre o rival belígero e o meu Páris
O duelo cruel suster não podem.
Júpiter sabe e os imortais qual deles
Chamam seus fados." — O varão divino
Monta, no coche as vítimas coloca;
Tem consigo Antenor, e as rédeas bate:
Ambos à desfilada se recolhem.
Eis Ulisses e Heitor o espaço medem,
Eis num elmo sorteiam quem da lança
Aénea encete o bote. Frígio ou Graio,
Súplice as mãos estende e aos céus implora:
"Do Ida augusto senhor, máximo padre,
Quem quer que o mal causasse, a Dite o entregues;
Nós de amizade o pacto mantenhamos."
Sacode o elmo Heitor, e o rosto vira;
Sai o nome de Páris . Em fieira,
Têm seus donos ao pé cavalos e armas.
Arnesa-se Alexandre, o pulcro esposo
Da emadeixada Helena: as caneleiras
Com prata afivelando, ao peito a coira
Do irmão seu Licaon, que bem lhe quadra,
Lâmina aénea claviargêntea ombreia,
De grande escudo sólido se adarga;
Flutua-lhe à cabeça o capacete,
De crina e hórrida crista, primoroso;
Pique válido empunha. De iguais armas
Galhardo Menelau se adorna e veste.
De ponto em branco, ao meio avançam torvos:
Frio estupor, a tal conspecto, assalta
Bem grevados Aqueus e équites Frígios.
Sanhudos no recinto se acometem,
Hastas brandindo. A sua arroja Páris ;
Rasca o broquel do Atrida sem rompê-lo,
Da brônzea rigidez se amolga a ponta.
Menelau, por seu turno, impreca: "Ó Jove,
Dá-me a injúria anular que hauri primeira;
No sacrílego autor meu braço a puna.
De atraiçoar vindouros estremeçam
O hóspede lhano que os receba amigo."
A lança aqui desfere, que no instante
Ao Priâmeo entra aguda o reforçado
Fúlgido escudo, rasga-lhe a excelente
Loriga e malha, a túnica penetra
No quadril: curva-se ele e a morte esquiva.
De argênteos cravos puxa o Atrida o gládio,
Que na cimeira voa-lhe em pedaços;
Fitando os céus então, suspira e geme:
"És o mais sevo nume, ó tu Satúrnio,
Cuidei nesse traidor vingar a afronta:
Estalou-me nas mãos, oh! raiva, a espada,
E arremessei frustrâneo um tiro cego."
Nisto, pelo cocar o aferra e empuxa
Para os Aqueus: o pespontado loro
Que ao mento o elmo liga, a mole goela
Cerra e o sufoca; eterna glória obtendo,
Firme o arrastara, se a Dial Ciprina
Rapidamente não quebrasse o atilho,
De hóstia bovina espólio. O herói, sacado
O elmo vazio, a revoltões remete-o
Aos contentes consócios, que o recadam.
Por matá-lo inda enresta acesa lança;
Mas fácil, como deusa, em névoa grossa
Vénus o leva ao tálamo fragrante.
À torre mesma corre, onde acha Helena
Entre as Dardânias: unectário peplo
Abanando-lhe, o vulto imita e as rugas
Da fiel cardadeira que na Esparta
As lãs curava e as boas lhe escolhia;
Disfarçada comete-a: "Vem, que Páris
No toro conjugal te aguarda, filha:
Enfeitado e gentil, não de um combate
Livre o julgaras, sim que a dança o espera,
E que já de um folguedo refocila."
A Helena isto comove; mas, donoso
Vendo-lhe o seio, o colo de alabastro,
Dos olhos o fulgor, pávida exclama:
Bárbara, em fascinar-me assim prossegues?
Rojar-me intentas à Meónia ou Frigia?
Lá tens algum mimoso entre esses povos?
Quando, o guapo Alexandre hoje abatido,
Ré Menelau me aceita e me perdoa,
Traças com teus enganos empecer-nos ?
Vai tu própria; não ponhas pés no Olimpo.
Esquece os deuses, dele sempre ao lado,
Soporta-lhe o desdém, até que esposa
Tu sejas de um mortal, ou sua escrava.
Não mais, desse cobarde o leito ornando
Quero a fábula ser das Teucras damas,
Curtir nova desonra e mágoas novas."
E a deusa irada: "Não me apures, teme
Que eu te persiga, mísera, e aborreça
Quanto hoje te amo: excitarei discórdia,
Que os Dardânios e os Gregos exaspere,
E vítima serás de horrendos fados."
Estremece a Ledeia, e silenciosa,
Do peplo candidíssimo velada,
Às Troadas se furta, e a guia Vénus.
No palácio elegante apenas entram,
As servas todas no lavor se apressam;
Monta à câmara sua Helena bela.
Numa sede a coloca a mãe dos risos
Em face de Alexandre; aversa olhando
A do Egífero neta o argúi severa:
"Pois te salvaste? aos golpes sucumbisses
Do meu primeiro esposo! Em destra lança
E em forças te gabavas de excedê-lo:
Anda, provoca a Menelau brioso,
Torna ao duelo agora. Estulto, crê-me,
O louro Menelau nem mais encares,
Que da hasta e forte mão serás prostrado."
Brando se excusa Páris : "Doce Helena,
Com essas lancetadas não me punjas:
Venceu-me o Atrida por favor de Palas;
Deuses mais faustos me farão vencê-lo.
Vamos em nossa cama congraçar-nos:
Tal ardor nunca tive e tais desejos;
Nem quando, arrebatada à meiga Esparta,
Velejava contigo, e a vez primeira
Na ilha Cranaé do amor gozamos;
Hoje mais te apeteço e mais te anelo."
Então sobe adiante, e o segue a esposa;
No entalhado seu leito adormeceram.
Menelau, como fera, escuma e vaga
Em busca do formoso e divo Páris :
Nem Troa algum, nem ínclito aliado
Ao valente rival mostrá-lo pôde;
Que nenhum o escondera, a todos sendo
Ódio mortal. — Bradou-lhes Agamémnon:
"Teucros e auxiliares, atendei-me:
Claro a vitória a Menelau pertence;
Rendei pois a riqueza e Helena Argiva,
Multa pagai-nos que o porvir memore."
Dos seus o aplauso unânime retumba.
quinta-feira, 25 de junho de 2009
Pasolini
"O teatro que esperamos, inclusive o mais absolutamente novo, não poderá ser nunca o teatro que esperamos. De fato se esperamos um novo teatro, esperamos necessariamente dentro das idéias que já temos, além disso, aquilo que esperamos, de alguma forma já está aí.
A Quem se Destina
Os destinatários desse novo teatro não serão os burgueses, (que vão ao teatro para divertir-se e que, às vezes, escandalizam-se) e sim, os grupos avançados da burguesia constituídos pelos poucos intelectuais realmente interessados em cultura: progressistas de esquerda, sobreviventes do laicismo liberal e radicais. Esses grupos avançados nem se divertirão e nem se escandalizarão, já que são em tudo semelhantes ao autor. Essa classificação é e pretende ser esquemática e terrorista.
A uma senhora que freqüente os teatros da cidade, se aconselha calorosamente que não assista às representações do novo teatro. Ou, caso se apresente com seu simbólico, patético, casaco de vison se encontrará na entrada um cartaz explicando que as senhoras com casaco de vison deverão pagar um preço trinta vezes maior que o preço normal. Nesse mesmo cartaz, ao contrário, estará escrito que jovens fascistas menores de vinte e cinco anos poderão entrar de graça. Além disso, pediremos também que não aplaudam. Vaias e demais provas de desaprovação serão admitidas.
O Teatro de Palavra
O novo teatro quer definir-se como Teatro de Palavra. Incompatibiliza-se tanto com o teatro tradicional como com todo tipo de contestação ao teatro tradicional. Remete-se explicitamente ao teatro da democracia ateniense, saltando completamente toda a tradição do teatro burguês, e porque não dizer a inteira tradição moderna do teatro renascentista e de Shakespeare. Espera-se do espectador mais o escutar que o ver. As personagens são idéias a serem ouvidas.
Destinatários e Espectadores
Acreditamos que os grupos avançados de cultura já podem constituir-se numericamente em um público, produzindo o seu próprio teatro. Estabelecendo assim, na relação entre autor e espectador, um feito único na história do teatro, pelas seguintes razões:
1- É um teatro possibilitado, solicitado e desfrutado no círculo cultural dos grupos avançados de cultura.
2- Representa o único caminho para o renascimento do teatro num país onde a burguesia é incapaz de produzir um teatro provinciano e acadêmico, e onde a classe operária é absolutamente alheia a esse tipo de problema.
3- É o único que pode chegar, não por determinação ou por retórica, à classe operária. Já que esta se encontra de fato unida por uma relação direta com os intelectuais avançados.
A que se opõe o Teatro de Palavra
O Teatro de Palavra opõe-se ao teatro de falatório (tradicional) e ao teatro do gesto e do grito (não tradicional). Desta dupla oposição nasce uma das principais características do Teatro de Palavra: a ausência quase total de ação cênica, desaparecendo aí quase totalmente portanto, a encenação. Reduzindo todos os seus elementos (luz, cenário, figurino, etc...) ao indispensável. Não deixará de ser entretanto uma forma de rito ( ainda que jamais experimentada ). Seu rito não pode ser definido de outro modo que RITO CULTURAL.
O Ator do Teatro de Palavra
O ator do Teatro de Palavra não terá que sustentar sua habilidade no atrativo pessoal (teatro tradicional), ou em uma espécie de força histérica e messiânica (teatro não tradicional), explorando demagogicamente o desejo de espetáculo do espectador (teatro tradicional), ou enganando o espectador mediante a imposição implícita de fazê-lo participar de um rito sacral (teatro não tradicional). Terá que sustentar sua habilidade em sua capacidade para compreender realmente o texto e ser assim, veículo vivo do próprio texto. Será melhor ator quanto mais o espectador, ao ouvi-lo dizer o texto, compreenda o que o ator compreendeu. O ator do Teatro de Palavra terá que ser simplesmente um homem de cultura.
Epílogo
O Teatro de Palavra é um teatro completamente novo, porque se dirige a um novo tipo de público.
O Teatro de Palavra não tem nenhum interesse espetacular, mundano, etc... Seu único interesse é o cultural, comum ao autor, aos atores e aos espectadores, que portanto, quando de reúnem, cumprem um RITO CULTURAL."
sexta-feira, 5 de junho de 2009
Geraldo Sarno
terça-feira, 5 de maio de 2009
Augusto Boal morre no Rio de Janeiro
No sábado, no início do ensaio, o Domingos disse: o Boal m%)*3u. O domingos fala de um modo que as vezes é difícil de decifrar. Quando diz um texto, interpreta, não; aí ele é surpreedentemente claro: um vigor-ator mais se eleva. No caso não havia vigor, e alguém, isto sempre acontece, pediu - incrédulo - que ele repetisse: "o Boal morreu".
ATIVISTA TEATRAL
Foi no Thèatre de Ville, em Paris, que Augusto Boal celebrou, na sexta-feira 27 de março, o Dia Mundial do Teatro. Homenageado pela Unesco, o diretor, dramaturgo e ensaísta brasileiro via o trabalho que realiza desde os anos 1960 ser mundialmente aplaudido.
O Teatro do Oprimido, o método que Boal desenvolve desde os anos 1960, é tão conhecido quanto impalpável. Muita gente já ouviu falar dele. Mas o que é, de fato, esse teatro que se propõe a ser, a um só tempo, arte, ação social e movimento político?
Boal, ex-integrante do Teatro de Arena e escritor incansável, diz, na entrevista a seguir, que se trata de uma ação capaz de transformar a sociedade e de fazer à estética dominante.
Em poucas palavras, como o senhor definiria o Teatro do Oprimido?
Defendemos que todos nós podemos fazer teatro, que todos podemos ser personagens, de fato, de nossas próprias vidas.
Por que temos de seguir a estética determinada pela classe dominante? O Teatro do Oprimido traz consigo a estética do oprimido. Ou seja, queremos que as pessoas retomem suas próprias palavras, imagens e sons.
Na prática, isso significa o que?
Significa compreender que, hoje, todas as formas de expressão e comunicação estão nas mãos dos opressores.
O que a televisão oferece é um crime estético. E ainda acham estranho que alguém saia matando 15 pessoas de uma só vez. O cérebro das pessoas está impregnado dessas imagens.
As rádios também repetem o mesmo som o tempo todo. Sem falar no tecno, que desregula até marca-passo, e é pior que ouvir gente quebrando tijolo em construção.
O que a gente quer, no Teatro do Oprimido, é lutar nesses três campos : palavra, imagem e som.
Nos dê um exemplo desse trabalho. Como ele é feito, que resultados proporciona?
O Teatro do Oprimido é seguido, por exemplo, pelo MST. Há uns 10 anos, eles fundaram um grupo e quase 30 camponeses vieram conhecer o nosso trabalho. Passamos pra eles tudo que podíamos.
Eles não vieram para consumir uma técnica, mas para receber instrumentos que pudessem usar em suas terras. Essa é também a ideia do Teatro do Oprimido ponto-a-ponto, que difunde o trabalho pelo Brasil. Temos multiplicadores do que fazemos aqui no Rio de Janeiro. Estamos em 16 Estados.
O que significa, para uma organização como o MST, ter grupos de teatro?
Significa ter o direito de tratar de certos assuntos a partir da visão deles, expor uma visão dos acontecimentos que não é aquela dos jornais, que coloca o MST como um bando de brutamontes.
O teatro permite que o pensamento que está por trás do movimento seja exposto, retrabalhado.
Em linhas gerais, qual a sua avaliação do teatro brasileiro hoje?
Existe um mundo de teatros no Brasil. Nunca vi um espetáculo no Amazonas ou no Pará, então não posso avaliar.
O que posso dizer é que a Lei Rouanet assassinou a criatividade do teatro.
Ao transferir do governo, que representa o povo, para as empresas a decisão de onde investir, a Lei substitui o pensamento criativo pelo publicitário. Essa lei tem que acabar.
Muitos produtores dizem exatamente o oposto: se acabar a lei, acaba o teatro.
Não é a verdade. Há muitos grupos produzindo por aí. Esse dinheiro da lei deveria ser transferido para um fundo.
A verba do fundo seria distribuída de acordo com a avaliação de comissões constituídas pela sociedade. A Lei não incentiva companhias como a minha, ou as de Zé Celso (Martinez Corrêa), Antunes Filho, Aderbal (Freire Filho) ou grupos como o Tapa.
Ela só funciona para projetos isolados, individualistas. Se eu depender do apoio de uma empresa de macarrão, como vou produzir uma peça como Ralé, de Gorki, que fala sobre a fome?
Qual a sua avaliação do Ministério da Cultura?
Desde que o Gilberto Gil assumiu, temos, pela primeira vez, um Ministério da Cultura. Antes, até houve pessoas interessantes na pasta, mas nunca um Ministério de fato.
Também acho que, pela primeira vez, deixou-se de pensar em cultura apenas como erudição, no sentido dos grandes clássicos literários, dos grandes pintores. O governo indicou que o Brasil deveria se apropriar do que já existia, daquilo que o povo faz.
A cultura não é apenas o que o povo consome, é também o que o povo produz. Os pontos de cultura são isso, eles apoiam o que já existia.
O Teatro do Oprimido também foi beneficiado, não?
Sim, e o Gil disse até que servimos de inspiração para os pontos de cultura. Mas também trabalhamos com outros Ministérios, como Educação e Saúde.
Fizemos um trabalho em escolas de cinco cidades, nas proximidades do Rio, e vimos o poder de transformação que o teatro exerceu sobre os alunos.
Nos dê um exemplo dessa transformação proporcionada pelo teatro.
No caso dos hospitais psiquiátricos, há uma diminuição absurda no consumo de medicamentos. Trabalhamos com a saúde e não com a doença mental.
Procuramos ativar a parte saudável do cérebro doente, estimulá-lo no que tem de vivo e criativo. Com isso, o teatro é capaz de devolver ao convívio social alguém que tinha se isolado. Nas comunidades carentes acontece o mesmo.
Os programas populares da televisão são um massacre, impedem que as pessoas percebam o que está dentro delas. Elas apenas consomem o que lhes é imposto. O Teatro do Oprimido procura ajudá-las a encontrar seus próprios meios de expressão.
Que episódios, nessas andanças, mostraram ao senhor o sentido do seu trabalho?
Vários. Me lembro de um presídio, no interior de São Paulo, que funcionava como um leprosário. A população da cidade queria o isolamento total daqueles presos.
Resolvemos fazer uma peça de teatro, com os presos, no meio de uma praça pública, e um morador era chamado para entrar em cena. Isso amenizou aquela relação conflituosa e violenta.
Também de lembro de um preso, que era engraçado, e, numa cena, fez uma menina de 10 anos rir. A menina foi elogiá-lo. Ele se vira pra mim e diz: “É a primeira vez na minha vida que alguém me diz que eu sirvo para a alguma coisa”.
O senhor receberá, na França, uma homenagem da Unesco. Aqui no Brasil o senhor se considera reconhecido?
Sou reconhecido no meu trabalho, mas pela mídia, não. A imprensa só se interessaria pelo nosso grupo se formássemos três bailarinos que fossem dançar no Bolshoi.
A mídia gosta de campeões. Campeão de Fórmula 1, filme campeão de bilheteria, qualquer coisa que chegue na frente, que represente a vitória. Mas o ser humano não é cavalo de corrida.
Nos anos 1950, o senhor fez parte do Teatro de Arena, que teve grande projeção e, ao seguir o caminho do Teatro do Oprimido, mudou o rumo da sua carreira. Foi consciente essa escolha?
Totalmente. A escolha individualista nunca esteve no meu horizonte.
Quando era pequeno e trabalhava na padaria do meu pai, eu via aqueles operários que passavam o dia com um pão com manteiga e uma média e pensava: “Isso não pode continuar assim”. Eu acredito na solidariedade.
Estou com 78 anos. Isso é muito tempo. Foi outro dia que nasci e não deu tempo de fazer nem metade do que eu queria.
Mas, mesmo com todas as dificuldades, o Teatro do Oprimido me realizou.
Cidadão não é aquele que vive em sociedade, cidadão é aquele que transforma. E acredito que o Teatro do Oprimido tenha deixado alguma coisa para o mundo.
quinta-feira, 23 de abril de 2009
Domingos de Oliveira
"Apenas o coração traz a genialidade. A qualidade básica do ator é, sem dúvida, sua generosidade."
“A posição do ator diante do diretor deve ser a daquele que soma. Se o diretor um dia indica certo caminho e, num outro dia, indica, com igual ênfase, um caminho que conflitua com aquele... o ator só tem a ganhar com isso. Não significa incoerência do diretor. Somente um ator burro pode ficar incomodado com isso. Significa apenas que a cena pode ser enfrentada por caminhos conflitantes! Se o ator souber somá-los, melhor para ele! A alma do ator deve ser como uma bolsa mágica, onde tudo cabe. Jamais a divisão ou a subtração. A soma! A multiplicação!” "
Uma vez Fernanda Montenegro me disse: ' Domingos, quando você estiver em cena, escolha uma coisa para fazer. Não importa muito o que você escolhe. Mas faça aquilo até o fim, às últimas conseqüências, ao perigo: Quem não gostar é porque não entendeu!'Jamais recebi um conselho tão sábio. Como grande atriz, Fernanda sabe que não há lugar no palco para meios-termos, dúvidas, timidez. Que é preciso ocupar a alma com algo radical que guie todo o resto. Algo tão forte que nos defenda da autocrítica e do vendaval de energias que provirá da platéia... Não importa o tamanho do papel, ou sua importância dramatúrgica dentro da peça. Quando um ator entra em cena, ele é o personagem principal. "
" (...) tenho por fé que o decorar um texto deva ser na verdade um mergulho profundo, um retorno ao mundo do autor, daquele que escreveu as linhas. Quando o autor escreveu, não precisou decorar. Aquelas palavras saíram dele por algum motivo. Os atores devem tentar reproduzir o próprio processo de pensamento do autor... Assim, o texto estará em nossas bocas e consciências verdadeiramente, de modo inevitável, como o autor escreveu. E assim, elevados através desse tipo de abordagem ao nível de autor, podem os atores começar seu verdadeiro trabalho."
Teatro é uma coisa séria, para gente séria.
" Ziembinski me disse uma vez que a “boa vontade” é um dos valores mais importantes do teatro. Realmente. Quando uma equipe de atores colabora em cena, tendo prazer em representar, ajudando o colega, de coração aberto para a platéia, cria um sentimento tão belo que ele é em si o espetáculo. "
" Nenhum espetáculo de teatro é mais bonito do que aquilo que acontece detrás do pano. Porque mais bonito que o teatro é o espírito do teatro."
" Todo mundo quer ser ator. Mas pouca gente pode ser ator. Ator de teatro em particular. Não porque sejam necessários dotes especialíssimos, mas porque pouca gente ama o teatro a ponto de poder ser um ator. "
"São raros os atores que propõem a si mesmos emoções ou pensamentos que não podem entender. Emoções e sentimentos de ordem inconsciente. Toda grande interpretação repousa no inconsciente. A inteligência, toda a inteligência, é indispensável, mas vale pouco. O ator tem valor se for louco. Louco sob absoluto controle. E, de novo, são poucos os que não temem. Liberar a própria loucura faz bem à saúde e não enlouquece ninguém."
" Coerência é um valor antigo. O direito à incoerência deve ser dos primeiros reivindicados pelo artista. Qualquer homem inteligente é incoerente. A coerência é apenas um exercício de uma inteligência essencialmente incoerente."
"Contar bem a história é a obrigação mínima."
" Mas um ator não sobe ao palco para ser amado; esta é uma gratificação secundária. Sobe ao palco para amar."
" O corpo é apenas o instrumento da alma. Esta, sim, deve ser aquecida antes do ensaio. Diante da lareira dos grandes sentimentos."
" Um ensaio de teatro deve ser um ato teatral. A partir do momento em que chegamos lá até o momento de ir embora, todo o nosso comportamento deve ser teatral. Alguém que assiste ao ensaio deve sair com a sensação de ter visto uma grande peça, cujo assunto é um ensaio de uma peça de teatro."
"A luz e a trilha musical são partes muito trabalhosas e delicadas de uma montagem teatral. Tão importantes quanto o cenário e o figurino, para dizer o mínimo. Depois do turbilhão do impacto que os atores e as demais realidades cênicas impõem à primeira concepção do diretor, é fazendo a trilha, e depois a luz, que sentimos o primeiro retorno ao precioso silêncio autoral. "
"Num ensaio de teatro e, posteriormente, na representação, tudo deve ser incorporado. Qualquer incidente inesperado, qualquer circunstância externa momentânea ou (principalmente) os estados de espírito dos colegas servem fortemente como fontes de criação."
"O valor de nosso trabalho não depende da opinião dos outros. Faremos tudo para que eles gostem, sem dúvida. Mas se não gostarem é porque não entenderam. Posto que representaremos com prazer, mãos estendidas e coração aberto. A boa intenção é tudo que se pode exigir no teatro."
" O ator é o espetáculo de si mesmo. Por mais diferentes que sejam os personagens que representa, o espetáculo que a platéia vê é a alma do ator por detrás do personagem. Por isso, o teatro é uma arte formidável. Somente grandes almas dão grandes espetáculos."
segunda-feira, 9 de março de 2009
Carlos Lessa - Crise: Rumos e Verdades
A crise mundial foi considerada uma crise histórica, ou seja, daquelas que, uma vez superadas, dão origem a novas configurações culturais, econômicas e políticas. Todos concordaram que se tratava da maior queima de valores da experiência capitalista.
Uma bolha se forma sob certas condições e cresce até se romper. A bolha do subprime pareceu alimentar, no seu interior, uma construção quase impossível, aonde, sob uma base de US$ 60 trilhões da soma dos PIBs de todos os países do mundo, se ergueu uma estrutura financeira com US$ 130 bilhões de ativos financeiros primários e 540 trilhões de derivativos. Se supusermos a economia real a base sob a qual se construiu um “castelo de cartas”, de múltiplos andares, grande complexidade, circulação rápida por caminhos “normais” e por estranhos percursos negociados com o nome genérico de “produtos”. Protegido pela bolha, as cartas do edifício eram coladas pela sólida confiança do chamado sistema financeiro mundial. A dissolução da bolha é acompanhada pela desmontagem do edifício, onde a “super cola” da confiança é substituída pela desconfiança recíproca e pela preferência pela liquidez. As cartas que vão caindo são ativos financeiros que se carbonizam.
Tudo leva a crer que continuarão a cair valores e não há previsão de quando se encerra este processo autofágico. A bolha, ao explodir, atinge todas as economias do espaço-mundo. No Brasil, inspirou ampliação das remessas das filiais para as matrizes aflitas; realização de aplicações de estrangeiros em valores brasileiros, gerando pressão cambial; desabamento do preço das commodities brasileiras; crise de crédito para bancos e grandes empresas que compunham funding com empréstimos de bancos do exterior.
Nossa moeda vive um momento de intensa volatilidade e torna impossível o cálculo econômico. A solvência de empresas brasileiras está abalada por grandes perdas. Sadia, Aracruz Celulose e Grupo Votorantim, por alguns balanços já divulgados, registram perdas dos lucros do balanço operacional dissipadas por perdas não-operacionais derivadas de jogos financeiros. Este aprece ser também o caso da CSN. Na crise da agricultura do Centro-Oeste, há uma forte componente com perdas especulativas no jogo de derivativos ligado ao mercado de futuros. Em resumo, a súbita inversão da taxa de câmbio impôs prejuízo às empresas que apostavam na valorização do real. Pela versão interna de crise de crédito, houve uma brutal elevação de juros; o capital de giro para empresas subiu de 2,02 a.m. para 3,20 a.m.; o empréstimo pessoal atingiu 6,15% a.m.; o cheque especial pratica 9,24% a.m. Continuamos, pela última decisão do Copom, campeões mundiais da taxa de juros real. Paulo Skaf, presidente da FIESP, em 17/11, declarou: “Estes juros que estão sendo cobrados são um catalisador para a crise”. Com lentes diferentes, Fábio Barbosa, presidente da FEBRABAN, afirma, em 26/11, que “o mercado está, pouco a pouco, retomando sua normalidade”.
O Brasil, hoje, dispõe de alguns recursos estratégicos para lidar com a crise. O principal deles são os US$ 200 bilhões de nossas reservas cambiais. Paira, entretanto, sobre este escudo, uma caixa-preta. Prevalece uma forte obscuridade em relação às articulações entre as empresas no Brasil e o cenário financeiro mundial – e é especialmente opaca nossa relação com SPEs, paraísos fiscais e derivativos intermediados por bancos estrangeiros. Dado o tamanho do passivo externo líquido superior a US$ 500 bilhões, não estamos a salvo de um ataque especulativo ao real. Deveríamos centralizar todas as operações cambiais no Banco do Brasil, dando um prazo para que todas as entidades (empresas ou pessoas físicas) registrassem seus haveres e deveres em moedas estrangeiras e participação em operações com derivativos. O Banco Central administraria um orçamento de câmbio realista. Esta seria a nossa operação de desrespeito ao Consenso de Washington. Na perspectiva brasileira, a crise da globalização instala um clima de economia de guerra e o nosso escudo protetor de US$ 200 bilhões é essencial para o futuro da nação brasileira.
De longa data, o devedor pessoa física é o preferido pelos bancos; tanto no pagamento de carnês de compras a prestação como nos cartões é bom pagador. Assume o débito pelo valor da prestação, aceita a tabela price e não considera o juro implícito na prestação (como vimos, paga no crédito especial 9,24 a.m.). Os bancos operam crédito a pessoa física com o risco reduzido, principalmente pela modalidade de crédito consignado ou desconto em folha. A família popular com baixa renda é ótima pagadora, pois percebe no estigma do SPC um veto à acumulação patrimonial. Na verdade, o bem de consumo durável ocupa um duplo espaço de patrimônio e objeto doméstico; qualquer família pobre sabe que seu eletrodoméstico é sua garantia num momento de dificuldade financeira. Este devedor pobre, muitos sem renda fixa, participou de uma expansão acelerada de endividamento. Sua propensão a se endividar foi estimulada pelo aumento de renda e pela sensação de segurança e progresso derivada da Bolsa Família e da queda de preço dos alimentos em 2005-6.
Esta situação inspira preocupação em José Castro, vice-presidente da AEB: “Se houver prolongamento da recessão internacional, o impacto no emprego poderá elevar a inadimplência, determinando um ciclo negativo na economia brasileira. (...) Nos últimos anos, o crédito no mercado interno cresceu a taxas elevadíssimas. Se houver demissões, além da retração interna, teremos problemas sérios. Crédito consignado tem prazo longo e, se houver explosão de inadimplência, poderemos ter um subprime tupiniquim”. Creio que Castro olha com temor o financiamento de veículos em 90 prestações sem entrada.
O Seminário Crise: Rumos e Verdades registrou, com reocupação, a existência de uma bolha tupiniquim, pequena em relação à crise da globalização, porém com repercussões extremamente perversas no corpo social brasileiro. A prevenção passa por reassumir os controles sobre os mecanismos da política econômica. Como bem advertiu César Benjamin: “É melhor estar preparado para piores cenários do que ser surpreendido por eles”.
domingo, 1 de fevereiro de 2009
Ela era gorda e miúda.
Tinha pezinhos redondos.
A cona era peluda
Igual à mão de um mono.
Alegrinha e vivaz
Feito andorinha
Às tardes vestia-se
Como um rapaz
Para enganar mocinhas.
Chamavam-lhe “Filó, a lésbica fadinha”.
Em tudo que tocava
Deixava sua marca registrada:
Uma estrelinha cor de maravilha
Fúcsia, bordô
Ninguém sabia o nome daquela cô.
Metia o dedo
Em todas as xerecas: loiras, pretas
Dizia-se até...
Que escarafunchava bonecas.
Bulia, beliscava
Como quem sabia
O que um dedo faz
Desce que nascia.
Mas à noite... quando dormia...
Peidava, rugia... e...
Nascia-lhe um bastão grosso
De início igual a um caroço
Depois...
Ia estufando, crescendo
E virava um troço
Lilás
Fúcsia
Bordô
Ninguém sabia a cô do troço
da Fadinha Filó.
Faziam fila na Vila.
Falada “Vila do Troço”.
Famosa nas Oropa
Oiapoc ao Chuí
Todo mundo tomava
Um bastão no oiti.
Era um gozo gozoso
Trevoso, gostoso
Um arrepião nos meio!
Mocinhas, marmanjões
Ressecadas velhinhas
Todo mundo gemia e chorava
De pura alegria
Na Vila do Troço.
Até que um belo dia...
Um cara troncudão
Com focinho de tira
De beiço bordô, fúcsia ou maravilha
(ninguém sabia o nome daquela cô)
Seqüestrou Fadinha
E foi morar na Ilha.
Nem barco, nem ponte
o troncudão nadando feito rinoceronte
Carregava Fadinha.
De pernas abertas
Nas costas do gigante
Pela primeira vez
Na sua vidinha
Filó estrebuchava
Revirando os óinho
Enquanto veloz veloz
O troncudão nadava.
A Vila do Troço
Ficou triste, vazia
Sorumbática, tétrica
Pois nunca mais se viu
Filó, a Fadinha lésbica
Que à noite virava fera
E peidava e rugia
E nascia-lhe um troço
Fúcsia
Lilás
Maravilha
Bordô
Até hoje ninguém conhece
O nome daquela cô.
E nunca mais se viu
Alguém-Fantasia
Que deixava uma estrela
Em tudo que tocava
E um rombo na bunda
De quem se apaixonava.
Extraído de BUFÓLICAS.
Se for possível, manda-me dizer:
- É lua cheia. A casa está vazia -
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
- É lua nova -
E revestida de luz te volto a ver.
(Júbilo Memória Noviciado da Paixão(1974) - O Poeta Inventa Viagem, Retorno e Morre de Saudade - I )
(Poesia: 1959 - 1979 - São Paulo: Quíron; [Brasília]: INL, 1980.)