quarta-feira, 12 de maio de 2010

Luís Antônio Giron

Teatro brasileiro? Tô fora!...
Por que os palcos brasileiros se converteram em formigueiros de banalidades e fracassos

Eu sempre abominei este tipo de expressão: “Me inclua fora dos palcos do Brasil”. Ou: “Teatro brasileiro? Tô fora!...” Mas agora esse tipo de manifestação já me parece menos preconceituosa que a constatação da deprimente realidade: o teatro feito no Brasil está péssimo e seus maiores encenadores, em agonia.

Muitas pessoas inteligentes chegaram à mesma conclusão, o que não me faz sentir tão fora da realidade assim. Sei que as artes cenicas contam com fanáticos incondicionais, capazes de seguir seus deuses mascarados como hoje seguimos as celebridades no twitter. Entendo a obsessão. Mas não perdoo a tolerância à mediocridade que hoje vigora entre o público, a crítica e os elencos brasileiros. Parece que todo mundo combinou que não vai denunciar as fragilidades, as bobagens, a falta de critério, a burrice das encenações e a miséria da dramaturgia. “Vamos fingir que está tudo bem que ninguém fora daqui vai notar mesmo”, dizem os envolvidos. E assim proliferam os canastrões, as peças ridículas metidas a alternativas, as montagens oportunistas que usam elencos de televisão para vender ingressos e sobretudo as peças sem drama, sem humor, sem nada mais que um alcolchoado de chavões para servir em rituais de uma religião morta que teima em sobreviver de aparências. Eis o teatro brasileiro: uma barca furada, um rito sem sentido, uma diversão inócua e domesticada.

No fim do ano passado, o diretor Gerald Thomas saltou da arca porque já não suportava suas últimas montagens, ocas e desprovidas de fundamento. Ele desistiu do teatro – por algum tempo, felizmente para uns, infelizmente para outros – porque já não aguentava ver suas bobagens no palco.

Outro diretor agonizante é José Celso Martinez Corrêa. Em sua últimas peças , ele abandonou as utopias para abraçar a barbárie e a tecnologia, o culto à máquina e à transgressão. Hoje seus espetáculos podem ser acessados e ignorados pela internet.

Epígonos de Zé Celso, os saltimbancos do Teatro da Vertigem fizeram da cenografia a essência de sua dramaturgia desossada. Quem viu Kastelo no início do ano em São Paulo sabe do que estou falando: é mais uma das criações “livres” da trupe - e, portanto, descompromissadas com a coerência em relação às fontes nas quais costumam se basear, ou às quais costumam piratear. O Teatro da Vertigem usou o nome de Franz Kafka para apresentar uma chanchada com ares de seriedade.

Então o que dizer do grupo Tapa de Eduardo Tolentino? Talvez seja dos males o menor, mas se tornou uma espécie de Comédie Française, de companhia de repertório com jeito de pública mas sem verbas públicas, fazendo um teatro domeseticado e muitas vezes repugnante pelos lugares-comuns.

E assim vemos o grupo Galpão, o Enrique Diaz e o Aderbal-Freire-Filho na mesma sarjeta de ideias. Eles repetem em coro fórmulas e citando autores mortos para tirar deles alguma inspiração em meio ao niiilismo e à ausência de tutano, para não falar critérios. Nem mesmo o Cacá Rosset parece invulnerável à praga da fórmula repetida, por perdida... Onde anda Cacá? Calou-se como Gerald?Não vou descer aos alternativos da Praça Roosevelt em São Paulo, que sugam o mel do submundo do saudoso Plínio Marcos, vendendo o gato de suas peças como se fosse lebre transgressiva. Chega de tanta palhaçada! Será que eu tenho de romper o pacto de hipcrisia e bancar o menino que aponta que o rei está nu? Acho um papel ridículo e de todo modo surrado. Vou cochichar para você, leitor, como as coisas estão ruins.Quando a indigência mental atinge os grandes mestres do teatro brasileiro, aí então a situação parece mais grave. O Antunes Filho é este caso radical da última instância da miséria intelectual a que chegamos. Recentemente fui assistir ao Policarpo Quaresma, em cartaz no teatro Sesc Consolação em São Paulo. E mais uma vez minha opinião foi corroborada.

O major Policarpo Quaresma é o protagonista do romance de Lima Barreto publicado em 1911. Ele simboliza o ideal nacionalista ingênuo triturado pela corrupção política, a agricultura atrasada e pela cultura local intelectualmente inferior. Depois de levantar libelos verde-amarelos e sair em busca da essência do Brasil, o herói se vê diante do vazio, presa da descrença total. Em uma cena da versão do diretor paulistano Antunes Filho, Policarpo Quaresma (interpretado pelo ator Lee Thalor) aparece a pisar ruidosamente nas madeiras do palco, como a matar as saúvas, ao ritmo do Hino Nacional Brasileiro, que toca no fundo. A cena pode soar ultrajante – e soaria ainda mais caso Antunes e seu Centro de Pesquisa Teatrais (CPT) ainda lidasse com a censura dos militares que quase mataram a cultura brasileira entre 1964 e 1985. Seu Policaro Quaresma denuncia a tortura e a desonestidade do exército brasileiro, o descaso com a população pobre, o desprezo ao pobre folclore local. A montagem teria sido explosiva em 1968, pois a transposição do jacobinismo do Marechal Floriano, aniquilando em 1894 a Revolta da Armada e impondo o estado de sítio no Brasil, bem poderia ter servido como metáfora do Ato Institucional número 8 de 13 de dezembro de 1968, que abolia as liberdades civis em território brasileiro. Os militantes do Comando de Caça aos Comunistas teriam arrasado o teatro, como fizeram com Roda-Viva, montagem de Zé Celso, no teatro Ruth Escobar naquele ano. Mas não estamos em 1968. Em 2010, tudo isso parece fora dos nossos tempos de democracia e exaltação à pujança do Brasil de FHC e Lula. A crítica parece perder o sentido.

Minha primeira impressão foi que Antunes aproveitou um texto guardado na gaveta e soprou soprar o pó dele a fim de comemorar seus veneráveis 80 anos – e os 32 anos de seu grupo teatral, primeiramente uma cooperativa batizada de Macunaíma e, a partir de 1998, intitulado CPT, com verbas do Serviço Social do Comércio (SESC). Escreve Antunes Filho sobre a encenação: “Podemos, se quisermos, classificar as alienações em toleráveis e intoleráveis: há momentos na história em que elas se entrecruzam provocando tragédias irreparáveis por (ou apesar de) terem sido baseados em atos risíveis de opereta de segunda categoria, onde as bravuras não foram senão bravatas”. A farsa no palco seria então a denúncia de uma alienação. Por mais que o termo “alienação” pareça ultrapassado, vamos conceder ao encenador o direito de usá-lo. Isso vale também para o uso que faz da farsa, da “opereta”, como veículo de crítica, à maneira de Bertolt Brecht, Dario Fò e Heiner Müller, respectivametne nos anos 30, 70 e 80. É o bom, velho e desgastado efeito do distanciamento crítico, que mais uma vez Antunes usa para criar uma alegoria política e social. Vamos também reconhecer que a montagem obteve um coro uníssono de resenhas positivas. O Caderno 2 de O Estado de São Paulo de sexta-feira, 9 de abril, dedicou uma página dupla para os mais proeminentes críticos do jornal para elogiar a peça com palavras grandiloquentes. Diante de tudo isso, eu devo ser o pior e último crítico a me manifestar. A montagem, na minha opinião, é ruim, estereotipada, quase escolar no seu vaivém de grupos alegóricos; é tediosa a sucessão de discursos panfletários; os diálogos são artificiais e os atores, muito jovens para o papel de venerandas autoridades. O resultado parece uma brincadeira de criança ou, no máximo, uma montagem de teatro universitário como aqueles do Teatro de Arena e dos CPCs dos anos 60 e 70. Pula daqui, pula dali, desfila acolá, tumulto e gritaria todo o tempo, tudo me lembrou o que de pior o teatro engajado brasileiro jamais produziu. Só que teatro engajado sem engajamento, sem público engajado, sem as condições para sua existência e propagação. O resultado é maneirista... e nulo.

Quero fazer uma observação. Sou admirador e amigo de todos esses grandes diretores, de Gerald a Antunes, de Zé Celso a Cacá e Tolentino. Acompanho suas trajetórias há muitas décadas. Em outros tempos, eles me influenciaram e me fizeram me dedicar aos estudos da dramaturgia, a concluir um Doutorado em Artes Cênicas na USP sobre o engajamento teatral do poeta Gonçalves Dias na crítica e no palco, veja só. Mas agora o que acontece com todos eles? Perderam a mão, vivem de glórias passadas, deitaram nos louros, desistiram por esgotamento de inspiração ou recursos? Talvez seja uma fase, como se diz em futebol. Mas a verdade é que o tal pacto de silêncio pode ser rompido a qualquer momento. O público pode desistir e trocar o alto teatro pelos musicais da Broadway e as operetas que enxameiam as zonas teatrais de São Paulo e Rio de Janeiro. E volto ao Antunes, o grande pilar do teatro intelectual do Brasil. Se até ele, como Policarpo Quaresma, parece ter adbicado de seu amor pelo Brasil e pelo teatro, então estamos todos mortos por dentro. Por isso, por enquanto, me incluam fora dos formigueiros de banalidade em que se transformaram os palcos.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Osmair Camargo

Eu conheci em mil novecentos e oitenta ….e cinco... um cara me deu um livro, “um cara me deu um livro" não! é tio da minha cunhada. Um livro que um amigo recomendou o autor: Ezra Pound.
E eu, sem saber de nada, fui ler o Ezra Pound.
Esse livro, Ezra Pound, Os Cantos, foi traduzido pelo Seo Haroldo de Campos e Seo Augusto de Campos, que eu encontrei aqui, tem o túmulo dele aqui atrás.
É...Isso aí me marcou profundamente. Não fui mais a mesma pessoa depois... nunca mais fui a mesma pessoa.
Arte de Ezra Pound me fez refletir muito sobre o conceito do que é arte,  como é possível... como se elaborar.. não é?! A...o paideuma que ele usa, toda verborragia que ele usa.  Mais de 5 idiomas numa poesia só. A narrativa histórica, a mitologia; a... como é se diz...a... a melopéia, a melopéia. A erudição de Ezra Pound.
Eu não acreditava comigo, comigo mesmo, que alguém.... pudesse ter um conteúdo tão vasto,  cultural, como tinha, como teve esse poeta norte americano; independente da posição política, ou sei lá o que; eu falo que a arte de Ezra Pound mudou totalmente a minha vida.
Dalí eu passei a ler com maior profundidade. Aí eu estudei mitologia mesmo, fui conhecer os dramaturgos... gregos, né; saber quem foi mesmo Sófocles, o que escreveu. Aí eu comecei a ler: ler Sófocles, li Eurípedes, li... li bastante coisa, pra tentar entender o ritmo de Ezra Pound, né; e encontrei com o próprio Augusto de Campos e acho que foi um dos... não diria que foi o mais feliz, meu irmão..., entre  os  dias mais felizes da minha vida quando encontrei o Seo Augusto de Campos. Sem dúvida Ezra Pound mudou minha vida. 
Eu diria que esse foi o top, me desculpe, fora disso, cara, tá eliminado. Pra mim foi.
To até emocionado..., até hoje.
Ta vendo né, um livrinho simples, um livrinho e tal, uma edição da Edusp, tenho até hoje - e não trouxe pro Seo Augusto de Campos, pra ele autografar – aquilo mudou totalmente; ai eu entendi o que  é arte; Me agarrei àquilo, me apaixonei de uma tal maneira.
Achei a obra, no mínimo, fantástica. No mínimo Fantástica!
Trechos da entrevista concedida a Lourinelson pelo Senhor Osmair Camargo, coveiro, hoje trabalhando no setor administrativo do Cemitério do Araçá,  São Paulo.
Abril de 2010.

domingo, 11 de abril de 2010

ASSIM FALAVA ZARATUSTRA : PAIDEUMA NIETZSCHIANO À FORMAÇÃO DO MESTRE

Ich wonhe in meinem eignen Haus
Hab niemanden nie nichts nachegemacht
Und – lachte noch jedem Meister aus
Der nicht sich selber ausgelacht.*


FRIEDRICH NIETZSCHE



Introdução

Nosso mestre é alguém cuja instrução nos exercita constantemente numa arte, e a quem, à medida que a prática se desenvolve, comunicamos gradualmente os fundamentos segundo os quais tentamos alcançar com mais segurança o objetivo ansiado.

O que diríamos da definição goethiana de Mestre acima referida? Quem é esta figura tão ilustre e digna, a quem confiamos a tarefa de nos transmitir preciosos conhecimentos, instruir-nos, "preparar-nos para a vida"? Para que nos remetamos à pergunta ‘o que é o Mestre?' – e se esta pergunta é feita a partir da tradição do pensamento ocidental –, precisamos voltar um pouco no tempo, mais ou menos há vinte e cinco séculos atrás.
Falamos de Platão. Este célebre pensador grego institui, particularmente em A República, a nova educação dos gregos: a filosofia, o pensamento racional, a dialética. Os poetas que cantavam os gloriosos feitos épicos – e cujos cantos eram constituintes da então pedagogia vigente – são "expulsos" da República platônica, pois segundo este pensador não podem ser considerados dignos formadores dos jovens caracteres atenienses (por atribuir feitos e paixões "indignas" aos deuses e vangloriar atitudes ignominiosas, entre outras razões). Os jovens atenienses, atesta A República, devem ser educados pelos filósofos. Os filósofos passam a ocupar a partir de então, o status de Mestre, ou seja, de educadores por excelência. Entretanto, Platão não responde satisfatoriamente à seguinte pergunta: que é o mestre? Quem ele é e o que faz com que ele seja o que é? Como alguém faz para se tornar um mestre? Em suma: quem forma o Mestre?
Se Platão não responde fundamentalmente a essa pergunta, de certa maneira a deixa como um questionamento importantíssimo o que um dos maiores críticos seus – o alemão Friedrich Nietzsche – muitos séculos depois irá colocar como crucial: como se dá o aprendizado do Mestre? O que lhe confere este "título"? Será ele capaz de formar outros novos mestres? Que espécie de formação é reservada a essa figura tão ilustre?
O escrito de Nietzsche que vai tratar essa questão é uma de suas obras mais célebres: Assim falava Zaratustra. É a obra que vai marcar o pensamento nietzschiano em toda sua profundidade, sua contundência – e também em sua beleza, poesia, musicalidade. É a partir desta obra que colocamos nossas reflexões acerca da questão a qual nos propomos, fazendo referência principalmente à leitura de Roberto Machado, em Zaratustra tragédia nietzschiana.

1 - O nascimento da tragédia: erro? Acerto?

O primeiro ensaio de Nietzsche (quando ainda professor de Filologia Clássica) trata da problemática essencial do trágico: O nascimento da tragédia ou Helenismo e Pessimismo. Trata-se de uma obra em que o autor trabalha profundamente os conceitos trágicos de dionisíaco e apolíneo, como constituintes do homem (cuja potência originária fora debilitada pelo platonismo e posteriormente o cristianismo), conceitos estes que vão nortear todo o pensamento nietzschiano daí por diante. Embora se tratando de um trabalho de "iniciante", o jovem Nietzsche já antecipa a contundência que seria a marca registrada de sua obra: aguda crítica à metafísica tradicional em prol de um saber trágico e poético.

E a estética racionalista socrática é a que introduz na arte a lógica, a teoria, o conceito, no sentido em que a criação artística deve derivar da postura crítica. Subordinando a beleza à razão, essa atitude desclassifica, desvaloriza o poeta trágico por não ter consciência do que faz e não apresentar claramente o seu saber

Nietzsche, no decorrer de sua obra, considerará O Nascimento da Tragédia sem dúvida uma obra inovadora, que tenha contribuído à filosofia por ampliar a discussão em torno dos conceitos de trágico e dionisíaco. No entanto, a crítica que o autor faz a si mesmo no tocante a este ensaio é ter tratado a arte justamente através de um ensaio – é ter considerado a arte como um remédio para a Razão mas dizendo isto através da própria razão, como coloca Roberto Machado:

Que validade poderá ter uma crítica total da razão feita a partir da razão? Que sentido poderá ter apelar para a razão contra a razão?

Daí, no âmago dessa problemática e do ponto de vista da expressão, o antagonismo entre o conceito e a palavra poética, ou, melhor ainda, o canto.


2 - A nova linguagem: ditirambos dionisíacos

Desconfio de todos os sistemáticos e afasto-me de seu caminho. A vontade de sistema é uma falta de probidade.

Alcançando a maturidade em seus escritos, Nietzsche vai privilegiar uma forma de exposição de seu pensamento diametralmente oposta à privilegiada pela filosofia tradicional: o filósofo vai demonstrar seu pensamento por uma via artística, em vez dos sistemas filosóficos tradicionais. Não necessariamente se tratam de poemas, mas sim de aforismos: ou melhor, nas palavras do autor, de ditirambos dionisíacos. Ditirambos são canções declamadas em tom dramático e vibrante que são dionisíacos porque remetem a Dioniso, o deus da tragédia. É um modo dramático-poético de declamar, que se afigura não somente numa alternativa estética, mas também – e principalmente – uma forma de se expressar que seja a propulsão de um pensamento iconoclasta e avassalador, que critique e ponha em xeque todas as proposições e problemáticas colocadas na história pela tradição ocidental, que seja o suporte de um pensamento, ou que seja um antídoto à decadente metafísica e ao cristianismo. Assim Nietzsche define sua concepção de dionisíaco:

O dizer Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos; a vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais elevados tipos – a isto chamei dionisíaco, isto entendi como a ponte para a psicologia do poeta trágico.

O ditirambo dionisíaco é o canto derradeiro a "fazer calar" toda forma de negação da vida, dos instintos. É a arte colocada num patamar elevadíssimo, supremo. A arte da palavra, por toda sua beleza, toda sua riqueza, sua "areté". Como afirma Roberto Machado:

É possível dizer que, no início da reflexão filosófica nietzschiana, o conceito é uma palavra enfraquecida pela distância em que se encontra da expressividade musical do trágico e o canto é o que eleva a palavra ao ápice de sua musicalidade, fazendo-a encontrar ou reencontrar a sua força originária.

E é o que Nietzsche sintetiza, nos Fragmentos Póstumos de 1887:

Comparada com a música, toda comunicação com palavras é vergonhosa; as palavras diluem e brutalizam; as palavras despersonalizam; as palavras tornam o incomum comum.


3 – A condição primeira

Nietzsche se vê como um pensador e também um genealogista, a apontar sintomas da civilização ocidental. Questiona o projeto epistemológico primeiro da ciência e da filosofia, apontado-os como uma "vontade de verdade", uma "concupiscência do saber", que tem suas origens em valores que foram criados – e lhes são legados algo de superior, absoluto –, quando na verdade são apenas valores. Estes valores moralistas decorrentes do platonismo e da tradição judaico-cristã, salienta Nietzsche, são valores decadentes, que negam a vida, o corpo, os instintos, em prol de um mundo supra-sensível, de uma outra vida, uma vez

[...]que dois dos maiores crimes da história da humanidade – o de Sócrates e o do Cristo – foram na verdade dois suicídios. Enfermos e moribundos eram os que desprezavam o corpo e a terra e inventaram o céu e as gostas de sangue redentoras.

Ora, a condição, pensa Nietzche então, para o ressurgimento da experiência trágica já começa a se realizar, visto que o homem moderno começa a pressentir os limites do prazer socrático do conhecimento, dessa ‘concupiscência de saber' .

Uma vez que o homem começa a questionar os valores que norteiam toda tradição ocidental, sua reação é negá-los a todo custo, irremediavelmente. Esta concepção é defendida violentamente por Arthur Schopenhauer em O mundo como vontade e representação mas, segundo Nietzsche, ainda é decadente, por desembocar no niilismo:

O homem moderno perpetrou a morte de deus, mas foi envolvido pela sombra do deus morto. Ainda é preciso, portanto, livrar-se dessa sombra.

Uma vez que deus está morto – assim iniciará Zaratustra o seu discurso – o homem precisa afirmar-se, precisa dizer sim à vida, precisa viver o trágico a todo e qualquer custo. Como isso é possível? A condição primeira desta reviravolta é a famosa transvaloração dos valores. Esta expressão é colocada inúmeras vezes na obra de Nietzsche. Significa o pensamento trágico por excelência, a sobrepor-se aos tradicionais valores da civilização ocidental cristã. A transvaloração é a condição da  existência em sua perspectiva trágica, que vai afirmar a vida a qualquer custo, por viabilizar a concepção do eterno retorno e o projeto do super-homem, conforme veremos mais adiante.


4 - O Paideuma

É em Assim falava Zaratustra que Nietzsche, segundo ele próprio, vai alcançar o seu ápice: nesta obra é que ele se apresenta como o filósofo trágico por excelência, que vai estremecer todos os valores edificados pela tradição ocidental e expressar seu pensamento por uma via poética, por música – que são os ditirambos dionisíacos. É Zaratustra a obra fundamental, em que está expressa a formação do mestre, seu aprendizado pedagógico:

Assim falou Zaratustra narra a história do aprendizado de Zaratustra como a  história da ‘descida', do ‘declínio', ou do ‘ocaso' de um herói trágico que segue uma trajetória marcada por dúvidas, angústia, terror, náusea, piedade..., mas termina com seu ‘amadurecimento', no momento em que ele assume alegremente o pensamento trágico por excelência .


4.1 - Início do aprendizado: o fracasso

Fui à praça do mercado e, como se falasse a todos, não falei a ninguém. À noite, porém, meus companheiros eram funâmbulos e cadáveres; e eu mesmo, quase um cadáver.

Na primeira parte do livro, o Preâmbulo, narra-se a ‘descida' de Zaratustra a uma praça pública. Ele, que estava há muitos anos recolhido à montanha, à sua preciosa solidão, decide ir ao povo e falar-lhe:

E Zaratustra falou assim ao povo: "Eu vos anuncio o Super-homem"

Neste preâmbulo em que fala à multidão, Nietzsche vai definir o "super-homem" (Übermensch). É ele o projeto fundamental e sublime da existência, aquele que já operou em si a transvaloração de todos os valores, tem toda sua potência de vida alçada ao máximo, está além do bem, do mal e de qualquer outro maniqueísmo "é onde  se pode abismar o vosso grande menosprezo." O homem é uma ponte erguida entre o animal e o Super-homem.

Pronunciadas estas palavras, Zaratustra tornou a olhar o povo, e calou-se. "Riem-se – disse o seu coração. – Não me compreendem; a minha boca não é a boca de  que estes ouvidos necessitam.

O fracasso pedagógico de Zaratustra se deve ao fato de o povo não estar preparado para receber sua mensagem, por lhe faltar a base de seu ensinamento: o conhecimento, ou, melhor ainda, o reconhecimento da morte de deus. Como se ele tivesse chegado cedo demais em lugar errado.

4.2 – Zaratustra, o solitário

Zaratustra se entristece por não ser compreendido pelo povo ou por ter desaprendido a lhe falar depois de tantos anos de solidão.

Trata-se da primeira etapa do aprendizado de Zaratustra, da formação do mestre. O mestre não é o "condutor de rebanhos", não é um mero pastor. O Mestre traz os seus ensinamentos e é aquele que também aprende ao ensinar, aprende que deve para isso ser um solitário. Mas este solitário não é um misantropo, pelo contrário, é o solitário aquele que desgarra do rebanho, que processou sua transvaloração de todos os valores, que é uma ponte para o Super-homem.

A solidão de Zaratustra não dispensa os homens. E, por isso, lança o desafio de viver no meio deles – ou com o mundo – sem esse sentimento de perda, sem esvaziamento, enfraquecimento. Como viver com os homens sem se enfraquecer, esvaziar-se, sentir-se abandonado, quando na solidão se é forte, transbordante?

Uma luz raiou em mim: não é ao povo que deve falar Zaratustra, mas a companheiros! não deve Zaratustra tornar-se pastor e cão de um rebanho. Desgarrar muitos do rebanho, foi para isso que vim.


4.3 - Zaratustra e seus discípulos

Zaratustra se dá por conta de que deve ter os seus discípulos, e a ferramenta última de seu paideuma é a explicitação do que é o Eterno Retorno. O conceito de eterno retorno é uma nova concepção do tempo, um concepção trágica:

Eis o pensamento abissal pressentido, pela primeira vez. Se a vingança provém de um tempo que não possa retroceder, de que a vontade humana não possa querer para trás, a vontade libertadora só poderá libertar-se da prisão do tempo, e portanto, da vingança, pela afirmação do eterno retorno. [...] O eterno retorno leva a vontade humana a suas últimas conseqüências como auto-superação, confere-lhe o máximo de potência ao libertá-la das idéias de prêmio e castigo, possibilitando a afirmação de tudo que foi e que é.

Essa nova concepção vai possibilitar uma afirmação total da vida. A vingança aqui citada por Roberto Machado é todo resquício de decadência e niilismo presente na moral cristã e que deve ser superado. Ao afirmar que tudo que é tornará a ser novamente, ao quebrar as concepções de tempo e destino instauradas pelo cristianismo, a idéia de eterno retorno é a  de amor fati, de amar a vida e afirmá-la a todo e qualquer custo, quaisquer que sejam as suas vicissitudes e intemperanças. É óbvio que a multidão que se encontrava na praça (no Preâmbulo de Zaratustra) não estava preparada para essa total transformação de valores assim demonstrada. Daí a necessidade dos discípulos:

A grande mudança estratégica ou pedagógica assinalada por esse discurso é não mais procurar mover ou comover o povo, mas arregimentar discípulos para a causa do super-homem por meio de uma pregação dirigida a alguns privilegiados.


4.4 – O Mestre e a superação

Na Quarta parte de livro, especialmente em O Despertar, Zaratustra inicia a sua última etapa do que se considera a formação do mestre. Apresentada toda sua nova e contundente filosofia trágica, tendo ela já seus discípulos, ela nunca está pronta:

As minhas saborosas e rigorosas máximas surtem efeito; e, na verdade, não o alimentei com legumes que incham, mas com um alimento de guerreiros, com um alimento de conquistadores: despertei novos desejos.

Esses "novos desejos" anunciam que, uma vez arregimentados os discípulos, o Mestre deve ser superado. Essa é a condição última – e derradeira – do ensinamento de Zaratustra.

Zaratustra lhes pede que dele se afastem, afirmando que ‘ retribui-se mal um mestre, quando se permanece sempre e somente discípulo', ele não está propriamente renegando os discípulos; está explicitando a conseqüência nova e paradoxal de seu ensino: ser seu discípulo é eleger-se a si mesmo, é ser solitário, criador de seus próprios valores; ser seu discípulo é, em vez de permanecer fiel ao seu ensinamento, isto é, em vez de imitá-lo, ultrapassá-lo, superá-lo no caminho do super-homem.

Da mesma forma Nietzsche se faz como exemplo, num aforismo de Crepúsculo dos Ídolos, com relação ao que ele teria a dizer quanto aos filósofos anteriores a ele, ou seja, seus mestres:

Esses foram para mim degraus; elevei-me por cima deles – para o que tive de sobre eles passar. Mas pensaram que eu queria sentar-me neles para descansar...


5 – Nietzsche, um homem da história

Seria leviano de nossa parte, após este pequeno esboço de alguns conceitos nietzschianos relacionados a questão de formação, ao paideuma, se não colocássemos também a importância de Nietzsche como um filósofo da cultura, no período em que viveu. Não há duvidas que Nietzsche tinha visões bastante iconoclastas para sua época – os escritos seus passaram a ser lidos seriamente somente a partir da segunda metade do século XX. Mas a época em que Nietzsche viveu sem dúvida pode-se considerar um torvelinho: encontra-se no momento último do idealismo alemão (que tivera seus maiores expoentes em Hegel e também em Kant), bem como situa-se na época do aflorar do cientificismo, da física social do positivismo de Augusto Comte. E Nietzsche é avesso a ambos, daí a originalidade e a importância de seu pensamento. Tomemos algumas considerações que Nietzsche fazia com relação à educação em sua época, e vejamos como elas ainda são bastante atuais:

São necessários educadores que, por seu rumo, tenham sido educados, espíritos superiores e nobres que, em cada momento, demonstraram, pela palavra e pelo silêncio comprovaram, culturas maduras, doces – e não os pretensiosos eruditos que o ginásio e a universidade hoje oferecem à juventude como "amas superiores", Faltam os educadores, afora as excepções, falta a primeira condição da educação: daí a decadência da cultura alemã.

Mas a dificuldade está, para os homens, em desaprender e propor-se um novo alvo; e custará indizível esforço substituir os pensamentos atuais de nosso sistema de educação, que tem suas raízes na Idade Média e para o qual o erudito medieval é, propriamente, o ideal da formação perfeita, por um novo pensamento fundamental. Já é tempo de ter em vista essas oposições.


Conclusão

Procuramos relacionar a importância da questão pedagógica na tradição do pensamento ocidental através de alguns conceitos da obra de um dos maiores críticos da tradição metafísica. A filosofia de Nietzsche encontra-se no núcleo de uma série de questões a serem pensadas no tocante não somente a problemas metafísicos ou ontológicos, mas também a questões até muito mais palpáveis, como a tradição de nosso ensino e os valores que regem este ponto crucial de nossa cultura.
O núcleo da discussão encontra-se a priori na oposição entre conceito e poesia, como formas de exposição de uma dada ontologia. É a maneira da exposição que vai marcar não só a ontologia, como a discussão pedagógica, que é a questão da formação do mestre. Nossa leitura da obra nietzschiana baseia-se na de Roberto Machado, particularmente em seu ensaio Zaratustra Tragédia nietzschiana. Na perspectiva apresentada nesta obra, vimos que o mestre é aquele que passa por constantes metamorfoses, está portanto em constante processo de aprendizado. A concepção de Zaratustra da superação do mestre é fundamental por ser instauradora de um pensamento crítico, de que toda tradição deve ser revista, criticada, principalmente em seu caráter dogmático. Outro fator de destaque é a importância da arte como um saber que não se prende a rigidez de conceitos, de verdade e erro. A arte apresenta-se, portanto, como um antídoto ao projeto epistemológico socrático-platônico e ao moralismo cego. Não no sentido radical de destruí-los ou aniquilá-los, mas na condição de pensá-los criticamente, de relê-los, uma vez que tal atividade é fundamental para a cultura, dentro da perspectiva nietzschiana. A cultura não pode ser estática ou dogmática: ela deve afirmar-se e superar sempre os seus antigos mestres, rever seus velhos valores, esse é o paideuma de Nietzsche presente no ideal do super-homem.


BIBLIOGRAFIA

Goethe, J.W. von. Escritos sobre Literatura. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.

Machado, Roberto. Zaratustra Tragédia Nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1997. (ZTN)
______________. Nietzsche e a Verdade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. (NV)

Nietzsche, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para
ninguém. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. (AFZ)


_______________. Crepúsculo dos Ídolos. Lisboa: Edições 70, 1985. (CI)

_______________. Ecce Homo ou Como alguém se torna o que é. São Paulo, Companhia
das Letras, 1995. (EH)

_______________. Humano, demasiado humano – um livro para espíritos livres. São
Paulo, Companhia das Letras, 2000. (HDH)

_______________. Obras Incompletas. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural,
1983. (CP)

_______________. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Cia das Letras, 1995.(NT)

_______________. Poemas. Coimbra: Centelha, 1985.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Peter Marcuse e Neil Brenner

Em 14 de agosto de 2009, o site do Instituto Humanitas Unisinos publicou a entrevista abaixo. Nela Marcuse e Neil Brenner, professor de sociologia e de estudos metropolitanos da New York University, discutiam a crise econômica mundial e seus efeitos na geografia das cidades, das nações e do mundo.

De que modo a crise pode ser uma oportunidade para a esquerda e os movimentos sociais?
Peter Marcuse -
O ponto de partida para se entender quais são os limites e as possibilidades para a esquerda nessa crise econômica é a situação atual do mercado imobiliário, particularmente o das cidades. Nos EUA, existe a grande solidariedade para com aqueles que perdem a casa própria, e se multiplicam as tentativas para evitar as desapropriações. Entre os mais radicais, há um movimento de ocupação das casas confiscadas, ativo em várias regiões: em Nova Iorque, assume o nome de Picture the Homeless; em Miami, chama-se Take Back the Land. Os ativistas ajudam as pessoas a ocupar as casas que ficaram vazias, conquistando assim muita simpatia por parte da população. Quando questionados sobre quais são os seus objetivos, respondem muitas vezes que estão conscientes de que as suas ações são ilegais e que as famílias de ocupantes deverão, cedo ou tarde, ir embora. O que buscam fazer é só tornar públicas as tragédias de quem foi jogado para fora de sua própria casa. O passo seguinte, logicamente, deve ser o reconhecimento de que o livre mercado é o instrumento errado para distribuir as casas e que os edifícios ocupados devem ser colocados de modo permanente ao serviço de quem tem necessidade deles. Porém, esse raciocínio não é feito. A recente formação e crescimento de movimentos sociais radicais é indubitável. Ao mesmo tempo, não conseguem explicitar o caráter político das suas reivindicações.

Neil Brenner - Se as pessoas entendessem que essa é a lógica inevitável do capitalismo, chegaríamos a uma crítica sistemática e a uma solução. Não se trata de corrigir alguns "casos isolados" de expulsão de pessoas que se encontraram em "circunstâncias infelizes". A situação atual é o resultado de mais de uma década de especulação de um mercado imobiliário orientado a tirar lucro das faixas mais frágeis da população.

Quais são, então, os efeitos da crise econômica nas metrópoles norte-americanas?
Peter Marcuse -
Até o momento, há mudanças significativas no modo em que o capitalismo intervém nas cidades. Mas as hierarquias do poder podem se modificar, mesmo que ainda não esteja claro em qual direção. É grande a possibilidade de que ocorra algo na frente política, o que influenciaria o governo das cidades. Com a eleição de Obama, houve um deslocamento geral para a esquerda, mesmo que certamente não de um modo radical. Se difundiu, assim, a necessidade de um papel mais forte das instituições públicas e de uma maior regulação da economia de mercado. Além disso, não há mais uma aceitação acrítica do papel central das finanças no setor do desenvolvimento urbanístico. Ao mesmo tempo, o uso que está sendo feito das ajudas de Estado indicam a importância contínua, senão crescente, do setor financeiro.

Neil Brenner - A pergunta que a esquerda deve se colocar não é "crise ou estabilidade", mas o que diferencia esta crise das outras. Esta, de fato, é uma ocasião para “politicizar” a financeirização da economia em geral e da economia urbana em particular. O papel dos negócios como mecanismo central do capitalismo foi dado por óbvio, enquanto subentende decisões e relações de força que decidem a distribuição dos recursos públicos. É com isso que hoje devemos nos confrontar de modo muito explícito e em todos os níveis: local, nacional e global.

Peter Marcuse - A palavra chave é "politicizar". Isso ainda não ocorreu. A desconfiança no setor financeiro não está muito longe de se tornar uma crítica do capitalismo, mas essa possibilidade continua nas margens da discussão pública, o que coloca em evidência os limites no funcionamento da democracia representativa. Sugere-se que a unidimensionalidade produzida pelo sistema é muito profunda. Porém, quando Obama fala nos campi universitários, as questões levantadas se referem à necessidade de prevenir os abortos em vez de limitar o poder de Wall Street.

Pode-se falar, portanto, de uma distância, senão de uma ruptura, entre o nível da representação democrática e o dos fenômenos sociais que se manifestam nas metrópoles?

Neil Brenner - Uma das respostas poderia ser esta: as instituições representativas garantem um certo nível de direitos civis propedêuticos à busca de outras formas de democracia radical. Porém, a questão é outra, isto é, se os movimentos globais operam para afirmar um projeto de democracia popular ou de autogestão mais radical do que os procedimentos eleitorais, sobre os quais se baseia a democracia parlamentar. Devemos nos perguntar se os processos de reestruturação econômica global nas últimas duas décadas, além de limitar os movimentos sociais, contribuíram para o surgimento de novas estratégias nessa direção nas cidades de todo o mundo.

Peter Marcuse - Eu vejo uma situação de grande ambiguidade. O lugar em que a democracia direta é possível são as cidades, o nível local, porque é ali que vivem os homens e as mulheres. O descontentamento com relação a essa crise expressa-se nas cidades e, em certa medida, nas políticas urbanas. Mas o fenômeno não é local, mas nacional e global. Por isso, temos respostas ambíguas: a indignação se expressa em nível local, mas o seu objetivo é supralocal. Uma consequência negativa da crise nas políticas locais é a subordinação dos problemas relativos à qualidade de vida ou aos salários e à distribuição dos recursos às medidas pelo crescimento econômico. É isso que está ocorrendo em Nova Iorque, onde a administração está investindo em infraestruturas na lower Manhattan para obter maior desenvolvimento econômico, em vez de investir nas escolas públicas, na saúde. Nessa situação de crise, a longa duração do domínio da esfera econômica terá efeitos negativos sobre os movimentos sociais progressistas em nível local.

A globalização, em todas as suas formas, coloca em jogo a relação entre o capital e a transformação espacial do mundo. Que relação existe hoje entre o desenvolvimento capitalista e a criação de novos espaços? 
Neil Brenner - A transformação espacial está no centro da acumulação de capital, porque a extração da mais-valia implica a criação de uma rede global de infraestruturas para facilitar a acumulação. Essa questão está no coração do nosso projeto "Cidades para as pessoas, não para o lucro". De um lado, há processos de acumulação e de mercantilização que produzem vários modos de apropriação do espaço orientado ao lucro. De outro, há lutas para se apropriar do espaço pelo uso popular, pela reprodução social. Mas o limite entre mercantilização e reprodução social é flutuante. A crise evidenciou a extensão crescente da mercantilização do mercado imobiliário e a oposição que ele encontrou. Este é um conflito sobre a produção do espaço. Assume formas diferentes com relação a 30, 50 ou 150 anos atrás, mas é endêmico ao capitalismo como o conflito para extrair mais-valia do trabalho.

Peter Marcuse - A crise foi produzida pela busca de lugares posteriores para o investimento de capital: os salários não eram suficientes para que o setor imobiliário produzisse frutos em termos de investimentos, por isso decidiu-se estender o crédito para produzir lucro. Quando os salários não são suficientemente altos para pagar novamente o crédito, tem-se uma crise como esta.

Nos EUA, a teoria crítica não se manifesta mais nos âmbitos do pensamento político ou da ciência política, mas nos estudos de geografia e de urbanística crítica. Por quê? Isso tem a ver com os processos de globalização e desnacionalização?

Neil Brenner - A partir dos anos 80, assistimos a uma significativa rearticulação do espaço político-econômico. Alguns estudiosos falaram disso em termos de globalização, desterritorialização ou desnacionalização. Eu prefiro falar de "rescaling", de redefinição das escalas espaciais. Um dos desafios hoje é dar sentido a essas novas geografias. Penso que o termo "desnacionalização" é problemático. A dimensão nacional é significativa em termos estruturais e políticos, assim como era no passado, mas está inserida em um contexto geográfico que mudou. Portanto, é necessário compreender a rearticulação do nível nacional com o nível local e o mundial da autoridade política. A União Europeia é um caso de estudo muito importante para se compreender essa nova configuração do espaço político e da autoridade política a partir do novo sistema de relações entre nacionais, subnacionais e supranacionais. Trata-se de um redimensionamento do espaço político nacional mais do que a sua dissolução.

Peter Marcuse - A geografia tem uma relação mediata com o político. Se tivermos que analisar o que está acontecendo nos EUA com a crise utilizando os instrumentos de uma boa ciência política, a conclusão seria imediatamente que uma revolução é útil. Se levarmos em consideração o sistema espacial, é preciso fazer algumas inferências posteriores antes de chegar à mesma conclusão, porque, introduzindo o nível espacial, produz-se uma formulação mediata da crise. Estou surpreso pelo fato de que a geografia é hoje mais radical do que a ciência política ou a economia, porque, em certo sentido, é ilógico. A crise subjacente se refere às relações econômicas e políticas na sociedade, e o espaço é um instrumento para influenciá-las e estruturá-las, mas é um reflexo disso.

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Um livro virtual que quer sair da tela
"Cities for People, not for Profit" é um projeto nascido por ocasião de um seminário ocorrido em Berlim por razão dos 80 anos de Peter Marcuse. Os materiais ali apresentados compõem um livro ainda virtual, mas sobre o qual já se falou tanto dentro quanto fora da tela. O jornal londrino The City falou a respeito, enquanto no sítio www.informaworld.com pode-se ler e baixar contribuições posteriores e reflexões sobre a tese que reúne os diversos ensaios iniciais. Para os autores, seguindo os estudos de David Harvey sobre o papel do espaço no atual regime flexível de acumulação capitalista, as metrópoles têm uma relevância estratégica para garantir o fluxo dos capitais, das mercadorias, da força de trabalho e para definir o laço entre dimensão local, nacional e supranacional na globalização econômica.

Estudiosos do tecido urbano
Peter Marcuse nasceu em Berlim em 1928. Vive nos EUA desde 1933, quando pai Herbert, para fugir do regime nazista, se transferiu para Nova Iorque. Professor e estudioso de urbanística, escreveu de modo extenso sobre a construção do mercado imobiliário e sobre o impacto das crises econômicas no tecido urbano. Particularmente devem ser destacados "Globalizing Cities: A New Spatial Order?" e "Of States and Cities: the Partitioning of Urban Space". Sobre a queda do Muro de Berlim e o processo de unificação alemã, ele publicou "Missing Marx: A Personal and Political Journal on a Year in East Germany, 1989-1990". Por ocasião do seu 80º aniversário, foi realizada uma conferência em Berlim em novembro sobre o tema do direito à cidade e sobre as perspectivas da teoria crítica aplicada à urbanística. Assim nasceu o livro "Cities for People, not for Profit", junto com Neil Brenner. Este último, sociólogo político urbano, trabalhou na redescoberta, nos EUA, do trabalho do geógrafo radical francês Henri Lefebvre. Organizou, junto com Stuart Elden, a tradução de alguns escritos do geógrafo francês recolhidos no livro "State, Space, World: Selected Essays". Entre os trabalhos recentes de Brenner estão "Global Cities Reader", "New State Spaces: Urban Governance and the Rescaling of Statehood" e "Spaces of Neoliberalism: Urban Restructuring in Western Europe and North America"

sexta-feira, 12 de março de 2010

Chico de Oliveira

entrevista publicada em 24 de julho de 2006


"A única coisa que o PSOL pode fazer [na política nacional] é ser uma espécie de Grilo Falante, uma espécie de consciência crítica", afirma Francisco de Oliveira. Não se trata de incapacidade específica da legenda, mas da constatação, ele diz, de que a política se tornou completamente irrelevante. Entre as causas deste fato, para ele incontornável, estão a financeirização da economia -que tira a autonomia de decisões dos governos nacionais- e a quebra das identidades de classe e sua representação em partidos políticos -também decorrente das transformações recentes do capitalismo. Na entrevista a seguir, Oliveira relaciona o Bolsa-Família e a política de cotas para negros a esse fim da política e diz que o PT pós-Lula pode ter o mesmo destino do peronismo argentino -com a criação de grupos gangsterizados que disputariam o espólio da penetração política e simbólica, a partir de programas sociais, entre os mais pobres. O sociólogo relaciona ainda o crescimento da facção criminosa PCC e os recentes ataques em São Paulo ao desenvolvimento do capitalismo no país, que, de acordo com ele, funciona em parte na ilegalidade e "não respeita nenhuma institucionalidade". A seguir, trechos da conversa, realizada em seu escritório, em São Paulo.  
 
FOLHA - Como o sr. vê a subida de Heloísa Helena no Datafolha? Como o sr. vê suas chances eleitorais?
FRANCISCO DE OLIVEIRA
- Ela pode crescer mais alguns pontos, mas não para passar dos 15%. Não acredito. O eleitorado que vai votar em Heloísa é fácil de se presumir. São ex-petistas, desiludidos com o PT, e, de outro lado, gente não necessariamente partidarizada decepcionada com o governo Lula ou que acha que o Alckmin não é nada. É nessa faixa que ela navega e vai crescer no máximo até 15%.

FOLHA - O sr. fazia a avaliação, já há algum tempo, de que havia um esgotamento da política, de sua capacidade de representar possibilidade de mudança. O sr. acha que a candidatura dela e o PSOL podem representar uma saída para isso?
OLIVEIRA
- Seria desejável, mas eu não acredito. O fenômeno da irrelevância da política é muito profundo. A candidatura agora, ou outra do PSOL repetida no futuro, será uma espécie de desafogo, mas com muito poucas chances de ser majoritária e muito poucas chances de tornar-se hegemônica e sobretudo de pautar politicamente. Os partidos não têm noção das raízes dessa irrelevância da política. Nem o PSOL. Ele imagina que pode refazer um partido tal como o PT foi na sua origem.

FOLHA - Não há possíveis semelhanças entre Heloísa Helena e o Lula nos anos 80?
OLIVEIRA
- Apesar de tudo, não há nenhuma semelhança entre os dois partidos. No sentido de bases e de poder pautar a política brasileira. O PT pautou. A única coisa que o PSOL pode fazer é ser uma espécie de Grilo Falante, uma espécie de consciência crítica, mas sem possibilidades de hegemonia, sem possibilidades sequer de pautar a política brasileira. Essa é uma conclusão muito dura, para mim mesmo e para os militantes em geral. É preciso pesquisar as razões da irrelevância da política hoje, e não só no Brasil. Aqui, isso tem um efeito devastador. Aqui, o fundo da irrelevância da política é a desigualdade. Não é mais plausível, para nenhum de nós, que você possa, por meio da política, atravessar o Rubicão. Não é mais possível. A formação do PT foi algo muito específico. É preciso não esquecer que ele se formou dentro da ditadura, com um movimento sindical em ascensão, numa espécie de eco de um Estado de Bem-Estar privatizado. Trabalhadores de certos ramos, sobretudo do metalúrgico, tinham planos de benefícios muito importantes. Era privatizado porque eram as empresas que davam. Esse movimento estava em ascensão -não como agora, que está em refluxo. E é importante não esquecer que aconteceu simultâneo a um movimento de democratização muito importante. Foi dentro desse movimento que o PT nasceu. Esse conjunto é irrepetível. As forças sindicais foram muito desgastadas. A queda de sindicalização é vertical. Os petroleiros foram arrasados pelo Fernando Henrique Cardoso. Além disso há um movimento de reestruturação produtiva, misturado à globalização, que devastou as fileiras do operariado. Não tem a conjuntura e a estrutura de forças que fizeram o PT. O movimento sindical, tal como o conhecemos, e tal como ele formou a pauta social e política dos anos 70, não existe mais. Aquele tipo de movimento sindical não existe mais e não existirá. O PSOL está, portanto, em busca de uma miragem.

FOLHA - Há alguma relação entre isso que o sr. descreve e o governo Lula?
OLIVEIRA
- Tomem a última declaração de bens de Lula. A metade de seu patrimônio está em aplicações financeiras. O paradoxo é que ele está à testa de um governo que endivida o país, e essa dívida é parte do seu patrimônio. É a cobra mordendo o próprio rabo. É apenas emblemático. Onde ele aplica? Como não é um especulador da bolsa, provavelmente em títulos da dívida pública. Não é só o Lula. Quem tiver um pouco de dinheiro vai fazer a mesma coisa. Ele aumenta o patrimônio graças ao endividamento do governo que preside. Sua posição política é completamente irrelevante. Faça o que fizer, está amarrado nessa financeirização do Estado. Isso não começou com ele, evidentemente. Seu governo até faz um esforço de reduzir a relação da dívida com o PIB. Com o Fernando Henrique, isso foi de 1 para 10. Isso financeirizou a economia e amarrou-a às determinações de fora. Este é o fator principal da irrelevância da política. Todas as relações sociais estão mediadas agora pela relação externa. A política interna perdeu a capacidade de dirigir a sociedade. Qualquer que seja a relação, ela tem que passar pelas relações externas. Isso quebra na espinha a política. Política é escolha. Política é opção. Mais ou menos, todos agora têm que seguir a mesma regra.

FOLHA - O sr. não reconhece nenhum mérito na política social do governo Lula, no Bolsa-Família? O sr. chegou a dizer que Lula exclui os trabalhadores da política, quando perguntado sobre o programa e as possíveis relações entre Lula e Getúlio Vargas.
OLIVEIRA
- As analogias entre Lula e Getúlio estão sendo propagandeadas aos quatro ventos. Até ele, quando líder sindical contrário a todas as criações sindicais da era varguista, até Lula agora quer se identificar com o Getúlio. Reafirmo: são antípodas. Lula não tem nada que ver com Getúlio. É o oposto. Lula não é populista, porque ele não faz o movimento de incluir o proletariado na política -ele faz o movimento de excluí-lo. Como é que pode? Pode no momento em que todas as medidas do governo são contra a centralidade do trabalho na política. O Bolsa-Família é algo que se pode entender a partir da irrelevância da política. Não adianta dizer que é assistencialista -isso é óbvio. De forma pedante, poderíamos dizer que o Bolsa-Família é uma criação foucaultiana. Um instrumento de controle, em primeiro lugar. Restaura uma espécie de clientelismo que não leva à política. Ela passa a ser determinada não por opções, mas pela "raça". Não é raça em termos raciais, é a "raça" da classe. É pelas suas carências que você é classificado perante o Estado. A política se constrói pelas carências. Então é abominável. Seria cínico dizer que é uma porcaria total, porque tem gente que come por causa do Bolsa-Família. Do outro lado, é isso. É a morte da política. Acabou a história de você depender das relações de força, das relações de classe para desenhar as políticas sociais. Elas são desenhadas agora por uma espécie de dispositivo foucaultiano. Quanto você tem de renda, qual é o seu estatuto de miserável, aí a política é desenhada. É uma clara regressão.

FOLHA - Não é mais desenhada a partir de direitos universais.
OLIVEIRA
- De jeito nenhum. É um dispositivo. Da mesma forma que as cotas, que as ações afirmativas. É também um dispositivo. É o paradoxo. É uma antipolítica na forma de uma política. Porque a desigualdade é tão abissal no Brasil que é difícil você resistir que é preciso um estatuto especial para você tratar da questão racial. Vejo a questão das cotas no mesmo registro que o Bolsa-Família. É uma biopolítica. As relações sociais não suportam mais uma política que na verdade envolva escolhas, opções e política. Seu substituto é um dispositivo foucaultiano.

FOLHA - Qual a função do PT hoje? Ele foi um catalisador de demandas nas últimas décadas.
OLIVEIRA
- O papel transformador do PT se esgotou. As razões são essas [da irrelevância da política]. O PT ficou dependente de Lula e não vai se libertar nunca mais. Talvez o PT tenha o destino do peronismo. Com essa política do Bolsa-Família, ele vai muito fundo, até as camadas mais pobres. E isso provavelmente fique como um legado para o PT pós-Lula. O que é extremamente perigoso, porque o partido peronista pós-Perón se tornou uma confederação de gangues. Eles se matam entre si. Eu não descarto esse cenário para o PT.

FOLHA - Grupos internos disputando um espólio?
OLIVEIRA
- Que é o peronismo. É isso. Grupos que disputam um espólio, numa luta interna que é um fenômeno extraordinário. A diferença do peronismo em relação a outras experiências chamadas populistas é que ele foi fundo. A ponto de visitarmos o cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, e o túmulo de Evita ter flores novas todos os dias. Chegaram aos mais pobres dos pobres. Isso o PT faz por meio do Bolsa-Família. Mas a aura transformadora do PT se foi, como no próprio peronismo.

FOLHA - Como isso que o sr. chama de esgotamento da política se liga com o dia-a-dia brasileiro, com a violência urbana, por exemplo?
OLIVEIRA
- É algo muito sério. É o rabo do rnitorrinco, que surgiu agora. Um sinal de que o capitalismo periférico não respeita nenhuma institucionalidade. Ele está se lixando para elas. A institucionalidade criada nos últimos dois séculos não agüenta o capitalismo periférico. Ela é incapaz de regular os conflitos postos pela marcha forçada do capitalismo periférico. Por todos os lados que você olhe, é tudo furado. Não tem uma regra que possa ser obedecida durante três meses. Nenhuma. Em qualquer atividade econômica. Tudo ultrapassa a regra institucional.
Por causa de sua velocidade. O pesado imposto que ele impõe para você acompanhar a marcha. O Brasil não tem condição de acompanhá-la. Eu fico espantado. A velocidade dessa espécie de remodelação permanente é espantável.
Isso desbarata qualquer regra. E aí vem o pior, que são os vasos comunicantes. A fronteira entre o legal e o ilegal acabou. Não existe. Estabeleceu-se um sistema de vasos comunicantes, e o PCC está no meio disso tudo. Deve estar no meio de altos negócios. Trata-se de uma questão de negócios.


Michel Foucault criou o conceito de biopoder


O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) cunhou os conceitos de biopoder e de biopolítica, citados pelo sociólogo e economista Francisco de Oliveira em sua análise sobre o Bolsa-Família, programa de transferência de renda do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Segundo Foucault, para além de sanções e punições, os Estados exercem controle sobre as populações de maneira positiva, definindo modos de pensamento e de comportamento e normatizando grupos sociais distintos.
A partir desse tipo de disciplina e controle, defendia o filósofo francês, "somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer".
No ensaio "O Ornitorrinco", que escreveu em 2003, primeiro ano de mandato de Lula, Francisco de Oliveira relacionava o comportamento político do governo do petista, do próprio PT e do PSDB com o capitalismo financeirizado contemporâneo.

Nova classe social
Segundo o sociólogo, a elite do sindicalismo nacional, e por conseqüência o grupo dirigente do PT, passou a constituir uma nova classe social ao ocupar posições nos conselhos de administração das principais fontes de recursos para investimentos no país, entre elas o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e os fundos de pensão das empresas estatais, como a Petrobras.
Assim esses novos "gestores" descolariam-se da representação dos interesses específicos dos trabalhadores, que não seriam mais os seus.


fonte http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2407200614.htm

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Rogério Sganzerla:

Manifesto do diretor Rogério Sganzerla:
1 – Meu filme é um far-west sobre o III Mundo. Isto é, fusão e mixagem de vários gêneros. Fiz um filme-soma;
um far-west mas também musical, documentário, policial, comédia (ou chanchada?) e ficção científica. Do
documentário, a sinceridade (Rossellini); do policial, a violência (Fuller); da comédia, o ritmo anárquico
(Sennett, Keaton); do western, a simplificação brutal dos conflitos (Mann).
2 – O Bandido da Luz Vermelha persegue, ele, a polícia enquanto os tiras fazem reflexões metafísicas,
meditando sobre a solidão e a incomunicabilidade. Quando um personagem não pode fazer nada, ele avacalha.
3 – Orson Welles me ensinou a não separar a política do crime.
4 – Jean-Luc Godadrd me ensinou a filmar tudo pela metade do preço.
5 – Em Glauber Rocha conheci o cinema de guerrilha feito à base de planos gerais.
6 – Fuller foi quem me mostrou como desmontar o cinema tradicional através da montagem.
7 – Cineasta do excesso e do crime, José Mojica Marins me apontou a poesia furiosa dos atores do Brás,
das cortinas e ruínas cafajestes e dos seus diálogos aparentemente banais. Mojica e o cinema japonês me
ensinaram a saber ser livre e – ao mesmo tempo – acadêmico.
8 – O solitário Murnau me ensinou a amar o plano fixo acima de todos os travellings.
9 – É preciso descobrir o segredo do cinema de Luís poeta e agitador Buñuel, anjo exterminador.
10 – Nunca se esquecendo de Hitchcock, Eisenstein e Nicholas Ray.
11 – Porque o que eu queira mesmo era fazer um filme mágico e cafajeste cujos personagens fossem sublimes
e boçais, onde a estupidez – acima de tudo – revelasse as leis secretas da alma e do corpo subdesenvolvido.
Quis fazer um painel sobre a sociedade delirante, ameaçada por um criminoso solitário. Quis dar esse salto
porque entendi que tinha que filmar o possível e o impossível num país subdesenvolvido. Meus personagens
são, todos eles, inutilmente boçais – aliás como 80% do cinema brasileiro; desde a estupidez trágica do
Corisco à bobagem de Boca de Ouro, passando por Zé do Caixão e pelos párias de Barravento.
12 – Estou filmando a vida do Bandido da Luz Vermelha como poderia estar contando os milagres de
São João Batista, a juventude de Marx ou as aventuras de Chateaubriand. É um bom pretexto para refletir
sobre o Brasil da década de 60. Nesse painel, a política e o crime identificam personagens do alto e do baixo
mundo.
13 – Tive de fazer cinema fora da lei aqui em São Paulo porque quis dar um esforço total em direção ao filme
brasileiro liberador, revolucionário também nas panorâmicas, na câmara fixa e nos cortes secos. O ponto de
partida de nossos filmes deve ser a instabilidade do cinema – como também da nossa sociedade, da nossa
estética, dos nossos amores e do nosso sono. Por isso, a câmara é indecisa; o som fugidio; os personagens
medrosos. Nesse País tudo é possível e por isso o filme pode explodir a qualquer momento.