Suspeito que estamos...
Há tempos venho tentando responder ao convite para escrever nesta
página três. O jornal me propôs vários temas, mas nunca me senti
preparado para dar conta de nenhum. Então resolvi escrever sobre o que
não sei, mas suspeito.
Suspeito que o tema primordial e decisivo da sociedade brasileira
sempre tenha sido, e seja ainda, a violência. A vida no Brasil nunca
valeu muito. Hoje vale ainda menos. Giramos em torno disso como um
animal preso ao poste. Suspeito que o sentimento de agoridade que nos
caracteriza faça fronteira com essa violência. Suspeito que
precisaríamos, como contraponto, de maior lentidão e inércia.
Perto da violência, suspeito que tudo saia do lugar. Noções como alto
e baixo, direito e esquerdo, bem e mal, certo e errado se confundem.
Por estar em toda parte, suspeito que esse tema aproxime-se, entre nós,
do impensável, e que traga em seu DNA, como esses vírus de mutações
constantes e velozes, alguma coisa metamórfica que sempre se transfigura
e escapa.
Suspeito no entanto que haja um vínculo estreito entre violência e
burrice urbana. Além de morar em São Paulo, andei recentemente por
Salvador, São Luís, Manaus, Natal –suspeito que sejam, todas elas,
cidades apodrecendo sob o sol. Quarteirões tombados tombando, de um
lado; prédios totalmente desconectados da cidade (além de feios), sem
cota nem propósito urbano, de outro. Suspeito que entre o Iphan
(Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e a especulação
imobiliária uma curiosa aliança esteja aos poucos se fazendo –ruínas
orgulhosas copulando com despautérios azulejados de 30 andares.
Suspeito que cada detalhe desses grandes centros urbanos esteja em
situação igualmente trágica. Suspeito, por exemplo, que quase todas as
praias em cidades desse porte tenham ficado estreitas, comprimidas
contra um muro de arrimo. Como não podemos mais transportar o paredão
dos egoístas (a expressão é de Le Corbusier) cem ou 200 metros no
sentido da montanha, suspeito que será preciso aterrar o mar para termos
novamente praias em escala decente. Suspeito que muitas vezes as piadas
que fazemos com os portugueses se apliquem a nós.
Suspeito que a indústria cultural brasileira seja também ela
violenta. Assisti a Luciano Huck "modernizando" a ximbica de um
espectador. Vi esse espectador chorar, depois mover os braços como se
quisesse abraçar os joelhos do apresentador. Suspeito que isso seja
cruel. Suspeito que isso seja cretino.
Suspeito que o tropicalismo tenha naturalizado nossa indústria
cultural até um ponto sem retorno, e que o ciclo de conquistas
democráticas provenientes dessa operação tenha já se encerrado há
décadas. Suspeito que perceber o tiquinho de crueldade que haveria em
atirar bacalhau nas pessoas não faça mal nenhum ao país; surpreender um
ríspido sargento no modo como Ivete Sangalo dança e canta também não.
Suspeito que acessar algo de ridículo no "Jornal Nacional" –a falsa
intimidade da dupla, seu balé de rostos virando para a câmera, a ruga na
sobrancelha de William Bonner, como um aluno estudioso se preparando
para começar uma prova, a gostosíssima Patrícia Poeta descrevendo, e
ainda mais com esse nome, a chegada de um tsunami ou terremoto de nove
graus na escala Richter– seja uma conquista nacional relevante.
Suspeito, no entanto, que nessa área caminhemos para uma verdadeira
hagiografia, unilateral e coletiva (daí o esforço, essencialmente
religioso, de controlar biografias).
Suspeito que a falência do caríssimo estado brasileiro esteja
maquiada por uma espécie de chantagem inconsciente –com uma distribuição
de renda como a nossa, sem ele seria ainda pior. Suspeito que esse
raciocínio seja imobilista e refém de si mesmo, e que tenhamos perdido
completamente qualquer medida de eficiência que permita cobrar o Estado
como um prestador de serviços (com a morte galopante da Política,
suspeito que seja nisso que ele venha se transformando).
Suspeito que a enorme migração do imaginário político para o
econômico nos países desenvolvidos tenha ocorrido após uma razoável
distribuição de renda via imposto e conquistas sindicais. A tirania da
vida econômica sobre a política, entre nós, se deu num quadro social
ainda trágico, que solicitaria muito da política. Suspeito que nossa
falta de agudeza e imaginação políticas sejam, por isso, eticamente
imperdoáveis. Suspeito que imaginação política no Brasil seria a
capacidade de transformar o aumento de renda, a partir do Deus-PIB, em
aumento de direitos, a partir do Deus-cidadania.
Tenho 54 anos e suspeito que os únicos projetos nacionais com Pê
razoavelmente grande que acompanhei sejam o Plano Real e o Bolsa
Família. Suspeito que não estejam tão distantes do imaginário
desenvolvimentista, árido e autoritário, dos anos 70 e que afinal isso
seja pouco para toda uma geração –e se suspeito que estou sendo injusto
com um grupo enorme de pequenos projetos que poderia chamar de
redemocratização, que me permitem inclusive escrever isto aqui num
grande jornal, suspeito também que isso não passe de obrigação cívica.
Por sinal, suspeito que tenhamos perdido completamente a medida dessa
obrigação, e que toda a cultura brasileira venha enfrentando fortes
problemas de escala. O que é o máximo? O que é o mínimo? De onde o
horror não passa? Dessa vez chega? Qual o limite? Mesmo em casos
extremos (conectar um pescoço humano a um poste com uma trava de
bicicleta, por exemplo), suspeito que nossa medida continue vaga,
elástica.
Suspeito que o termo dívida interna, de memória econômica, descreva
bem o país –devemos aos deserdados, aos desocupados, aos desmantelados,
aos desabitados, aos destrambelhados e aos desmemoriados. Devemos renda,
saúde, educação, claro, mas também avencas, bueiros, ruas, parques,
chicletes, remédios tarja preta; devemos água potável, brinquedos,
lanternas, poços artesianos; devemos livros, trufas, CDs, lentes de
contato, filmes de arte, óculos escuros, museus, proteína, alface.
Devemos aos pobres, aos índios, aos pretos e aos pardos, mas também aos
albinos, aos esquizofrênicos, aos insones, aos priápicos, aos tiozinhos
de padaria, aos mitômanos e aos sexualmente indecisos. Devemos demais
aos cães atropelados, prensados contra o "guard-rail". Devemos aos
palhaços de bufê infantil e aos papais noéis de shopping. Suspeito que
nossa dívida interna seja impossível de descrever.
Suspeito que deus não exista –ou não tenha paciência para nenhum dos assuntos de que lembrei aqui.
Suspeito que a risada, o pôr do sol, o hino à alegria e o acorde
maior estejam sendo de alguma forma privatizados. Suspeito que Paulo
Coelho, o padre Marcelo Rossi e o bispo Edir Macedo sejam três faces de
uma mesma e última privatização –a do infinito. Suspeito que estatizar
essas coisas seja ainda pior.
Suspeito que a Portuguesa vai falir, acabar. Suspeito que Galvão Bueno não vai se aposentar nesta Copa, nem na próxima.
Suspeito que estamos fodidos.
NUNO RAMOS, 54, é artista plástico e escritor
Tendências/Debates de Nuno Ramos originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo em 28 de maio de 2014.
terça-feira, 3 de junho de 2014
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